Entrevista:O Estado inteligente

quinta-feira, setembro 06, 2007

A heresia de Bento Demétrio Magnoli *

Diante de meio milhão de jovens católicos reunidos em Loreto (Itália), o papa Bento XVI conclamou a humanidade a "salvar o planeta, antes que seja tarde demais". No sermão papal, o imperativo de "proteger a Criação" ganhou uma descrição pós-moderna, na qual se fundem os discursos romântico ("recriar uma forte aliança entre o homem e a Terra") e científico ("um tipo de desenvolvimento que nem sempre tem protegido os delicados equilíbrios da natureza"). Segundo a tradição cristã, o Mal está no homem. Na heresia de Bento, o Mal é um fruto do homem, mas está fora dele e se apresenta sob as formas de economia e tecnologia.

A idéia do apocalipse antecede o cristianismo. Num tablete de argila assírio, datado de 2800 a.C., pode-se ler: "Nossa Terra está degenerada nesses últimos tempos. Há indícios de que o mundo está rapidamente chegando ao fim. Suborno e corrupção generalizaram-se." Exceto pela última frase, cuja atualidade tem outros sentidos, a profecia poderia servir de epígrafe ao mais recente relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima (IPCC) a respeito do aquecimento global. O fim do mundo é uma melodia ancestral, inscrita profundamente no espírito humano. Hoje, a sua proclamação aproxima a religião canônica de Roma da religião pagã do ambientalismo.

Na tradição cristã, fogo e inundações anunciarão o fim da era do pecado e o início do Milênio. Talvez por isso as profecias apocalípticas do IPCC nos soem tão estranhamente familiares: a linguagem de fundo é a mesma. Uma edição da revista Life, de setembro de 1993, trazia a manchete: O ano do tempo assassino. Por que a natureza enlouqueceu? Não há ciência nenhuma na imputação de insanidade e na atribuição de uma vontade homicida à natureza. Mas essa manchete se converteu em padrão, num tipo de verdade evidente de aceitação universal. Como entender o fenômeno sem aludir às camadas recônditas da cultura?

Os ambientalistas contemporâneos marcham atrás da bandeira da ciência, ao menos no domínio crucial do aquecimento global. A associação é estranha, quase espúria. O ambientalismo emergiu no interior do movimento romântico, no outono do século 18. Os românticos reagiam à filosofia das Luzes, contestando o progresso e o mundo artificial da ciência e das tecnologias. Eles adoravam um passado idealizado, pleno de pureza, tecido com os fios da emoção. Civilização e natureza lhes pareciam pólos opostos e inconciliáveis: a primeira, fonte contaminada da perdição; a segunda, refúgio intocado e salvação.

A "religião da natureza" fincou raízes nos EUA com o filósofo Henry David Thoreau (1817-62) e seu amigo Ralph Waldo Emerson (1803-82), ensaísta e poeta. Thoreau, um defensor da preservação dos ambientes e paisagens naturais, esteve entre os precursores de passatempos recreativos "ecológicos", como as caminhadas em trilhas selvagens e a canoagem. Emerson liderou o movimento transcedentalista, que cultivava os valores da intuição individual e da experiência sensível. As idéias mais radicais do transcedentalismo, como o vegetarianismo e a formação de comunidades naturalistas, viriam a inspirar o movimento hippie, um século depois.

O elo entre o romantismo ecológico e o pensamento científico foi estabelecido por John Muir (1838-1914), geólogo amador e pioneiro do estudo da erosão glacial no Vale de Yosemite. Muir, que se enxergava como discípulo das idéias de Emerson, fundou o Sierra Club, a mais antiga organização ambientalista americana, e inaugurou a política de parques nacionais nos EUA. Nos relatórios do IPCC, sob a densa massa da linguagem científica, não é difícil identificar o pulso característico do romantismo, que se revela por inteiro na recepção midiática dos diagnósticos e prognósticos sobre a dinâmica dos climas. Hoje, a imaginação popular assimilou a curiosa idéia de que a natureza foi acometida por uma doença, em razão da ruptura dos seus "delicados equilíbrios". Os sintomas da moléstia transpareceriam em incontáveis eventos meteorológicos, como os dias muito quentes de verão, as noites sem brisa, as chuvas torrenciais, as tempestades tropicais e os furacões.

A ciência não explica a aparente unanimidade construída em torno dos relatórios do IPCC, que se sustentam sobre sofisticados aparatos de modelagem computadorizada e se vestem nas roupagens da estatística de probabilidades, mas nos chegam como profecias oraculares. Há cientistas devotados que criticam duramente esses relatórios, mas ninguém os repercute, como se a ciência pudesse excluir a divergência. Os críticos sérios enfatizam as incertezas sobre a magnitude do aquecimento global e sobre o grau de interferência humana no fenômeno, mas tudo se passa como se houvesse respostas incontestáveis à disposição. Os que divergem, no campo científico, são tratados como dissidentes nos regimes totalitários - isto é, como loucos, ou mercenários a soldo de companhias petrolíferas.

Não é a ciência, mas arraigadas tradições culturais que transformam uma tese bem fundamentada na proclamação de uma verdade absoluta. A "religião da natureza" tem um apelo essencial no imaginário da sociedade urbana e industrial. A idéia de uma natureza primeva, sublime, que está lá fora e precisa ser protegida dos fluidos envenenados da civilização ganhou sua expressão mais extremada na profecia do apocalipse climático. A incorporação desse apocalipse pela narrativa da Igreja, realizada no encontro de Loreto, opera por meio da identificação entre natureza e Criação. O sermão papal chegou a reproduzir literalmente a idéia da natureza como inspiradora de espiritualidade, um tema caro aos pioneiros do ambientalismo.

O marxismo, religião laica do século 20, queria salvar o proletariado e, com ele, toda a humanidade. A "religião da natureza" quer mais: trata-se, modestamente, de salvar o próprio planeta - ou a Criação, segundo a heresia de Bento.

* Demétrio Magnoli é sociólogo e doutor em Geografia Humana pela USP. E-mail: demetrio.magnoli@terra.com.br

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