Um caso para pensar e um lembrete:
se o presidente quer destravar, o que
emperra mesmo é o mau ensino
Se o leitor acreditou na história de prioridade para a educação, alardeada durante a campanha eleitoral por candidatos diversos aos mais diferentes cargos, agora já descobriu: era tudo mentirinha. Ou melhor: houve uma única e nobre exceção – o senador Cristovam Buarque. Este acredita mesmo que a escolha é ou educação ou morte e, com base nessa crença, fez a mais digna das campanhas presidenciais da temporada. Quanto aos outros, a "prioridade da educação" pode ser medida pela rapidez com que o tema foi varrido do mapa. Os políticos dedicam-se no momento a politicar em torno das mesas do Congresso e da formação do ministério. Os economistas, a economistar em torno de desenvolvimentismo, mercado, juros e similares. O presidente Lula, a proclamar a intenção de "destravar o país" – sendo que destravar, para ele, diz respeito exclusivamente à economia.
Cristovam Buarque tinha como carro-chefe de seu programa a federalização do ensino público fundamental e médio do país. O ensino nesses níveis é atualmente atribuição dos estados e municípios, e entre eles há grandes disparidades. Buarque propunha que a União arcasse com a responsabilidade de eliminar as diferenças, a começar pelo financiamento das unidades federativas mais pobres, e de fixar padrões mínimos de qualidade. Pode ser uma boa proposta, pode ser má. Alguém a discutiu? Não. Nem na campanha nem neste período pós-eleitoral. Na campanha, é bom esclarecer, quando os candidatos invocam a prioridade da educação, estão papagaiando coisa igual a: "A prioridade é a vida", "A prioridade é a justiça". Quem pode ser contra?
Um caso levantado pelo jornalista Gilberto Dimenstein, em sua coluna na Folha de S.Paulo, chama atenção para a complexidade da questão. O Colégio Porto Seguro, um dos mais tradicionais e mais reputados de São Paulo, fundado pela colônia alemã no século XIX, mantém uma unidade destinada às crianças da favela de Paraisópolis. A favela é vizinha ao colégio. Uma favela chamar-se Paraisópolis revela que jamais se deve subestimar o grau de otimismo do brasileiro. O fato de ser vizinha do colégio, no bairro chique do Morumbi, expõe a "pele de leopardo" que cada vez mais toma conta das cidades brasileiras, para recorrer a uma expressão do tempo da Guerra do Vietnã. (A expressão indicava que, como as manchas da pele desses felinos, as áreas dominadas pela guerrilha vietcongue e pelo governo pró-EUA se tocavam, se imbricavam e se confundiam.) O fato de Paraisópolis ser uma das maiores e mais violentas favelas de São Paulo revela quanto a mancha "vietcongue" da pele de leopardo se mostra desenvolta ao avançar sobre a mancha antes exclusiva da porção que o governador Cláudio Lembo chama de "elite branca".
A Escola da Comunidade, esse é o nome da seção do Porto Seguro destinada às crianças e aos adolescentes da favela, tem 800 alunos, aos quais as aulas são ministradas pelos mesmos professores da unidade-mãe. Trata-se de um precioso e generoso serviço prestado à população ali do lado. Implantada nos anos 60, a escola a princípio se limitava ao ensino fundamental. Em 2003, passou a oferecer também ensino médio. No ano passado, 68 alunos formados na primeira turma candidataram-se, com base nos resultados obtidos no Enem, a uma bolsa no ProUni, o programa do governo que financia os estudos de alunos carentes em faculdades particulares. Só doze foram aprovados.
A Escola da Comunidade utiliza-se das mesmas instalações do Porto Seguro, digamos, "normal". Seus alunos têm acesso aos mesmos laboratórios e aos mesmos computadores. O material didático é de graça e há aulas de reforço para quem precisa. Por que seus alunos não obtiveram, na tentativa de acesso à faculdade, o mesmo sucesso que os do Porto Seguro costumam ter? A resposta aponta para o ambiente familiar. Os alunos do Porto Seguro se originam de famílias não só mais exigentes, mas que lhes fornecem um ambiente cultural de que os outros carecem. Os livros, os filmes, os museus, as notícias e as viagens são artigos em geral disponíveis só do lado de cá da pele de leopardo.
Essa constatação arrasta a questão do ensino para além dos limites da escola. Baseado em cálculos de especialistas, Dimenstein informa que a escola só consegue responder por 30% de uma boa educação. Nos restantes 70% a criança e o adolescente serão abastecidos por estímulos e ofertas estranhas ao currículo. Eis um tema a ser debatido. Mas quem discutirá, fora do mundinho de sempre? A educação será, realmente, prioridade, quando houver tantas notícias, artigos e debates sobre ela, na imprensa escrita e na TV, quanto sobre crescimento econômico. E tantos políticos atentos a ela quanto às emendas ao Orçamento. Não vale dizer que o assunto é chato. Se a questão fosse assunto chato, ninguém falaria de economia. O presidente quer destravar? A suprema trava é a educação ruim e mal distribuída.
Entrevista:O Estado inteligente
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