O historiador chinês diz que seu país está
se democratizando, mas os controles vão
existir ainda por muito tempo
Duda Teixeira
O historiador Wang Hui foi um dos últimos estudantes a deixar a Praça da Paz Celestial depois do massacre de 1989. A persistência rendeu-lhe um período de exílio e "reeducação" na província rural de Shaanxi. Hoje, ele é o principal expoente da Nova Esquerda. Esse movimento de intelectuais defende uma dose maior de preocupação social no processo de crescimento econômico chinês. Diferentemente de outros grupos de oposição, a Nova Esquerda acredita que não é preciso derrubar o regime comunista – basta reformá-lo por dentro. Professor de literatura chinesa na Universidade Tsinghua, em Pequim, há dez anos Wang edita Dushu (Leitura, em chinês), a revista de maior repercussão no meio intelectual chinês. Seus artigos sobre a precariedade da vida no campo e contra a pena de morte nortearam o debate público e conseguiram o que parecia impossível: modificar políticas governamentais. Aos 47 anos, Wang concedeu a seguinte entrevista de sua casa em Pequim.
Veja – Como é defender a democracia dentro de um regime que censura a imprensa e viola os direitos humanos?
Wang – A censura não está em todos os setores da vida chinesa. Sempre publiquei o que quis na Dushu, que é uma revista voltada para um público intelectualizado. Já discorri sobre os mais variados temas sem ser incomodado. Nas livrarias, há obras de todo o espectro ideológico, da extrema esquerda à extrema direita, incluindo muitos títulos traduzidos. O mesmo ocorre na universidade, onde tenho total liberdade para discutir assuntos com meus alunos e não há nenhuma intervenção das autoridades políticas. A censura é mais presente e abrangente nos veículos de comunicação de maior tiragem e na internet. A censura está longe de ser o que o Ocidente imagina, mas, enfim, em um período de rápida transição como o que estamos vivendo, é muito difícil saber qual é o limite. Eu não sei muito bem até onde posso ir, nem os governantes sabem.
Veja – O governo chinês está mais aberto a críticas?
Wang – Com certeza. O debate na mídia tem sido intenso e o próprio governo tem promovido eventos com especialistas, o que está influenciando suas tomadas de decisão. Um exemplo disso ocorreu em 2000, quando promovemos debates nas universidades e publicamos uma série de artigos na Dushu sobre a pobreza e a falta de assistência médica nas áreas rurais. É uma situação terrível. Cerca de 800 milhões de camponeses estão totalmente alheios ao progresso obtido nas cidades. Depois de tudo isso, o governo, que não reconhecia a existência de uma crise no campo, mudou de postura e destinou uma verba importante para reconstruir o interior do país.
Veja – É possível existir democracia na China?
Wang – Estamos vivendo o início de um processo lento de transição democrática que vai levar várias décadas para se completar. Há vários indícios de que ele já começou. Na China, há liberdade de expressão nas universidades e as pessoas estão muito conscientes dos seus direitos. Durante o processo de privatização das companhias estatais, vários operários que perderam o emprego processaram o governo. Eles acusavam o Estado de não ser capaz de cumprir seus deveres e proteger seus direitos, algo impensável anos antes. Alguns dias atrás, o Partido Comunista aceitou iniciar um programa de bônus sociais em empresas estatais. É uma idéia que já vinha sendo defendida por alguns intelectuais e especialistas havia vários anos e que agora passou a merecer a atenção do governo central.
Veja – O que é o bônus social?
Wang – Com o bônus social, os funcionários poderiam possuir ações da empresa em que trabalham, ter uma remuneração de acordo com o lucro e tomar parte nas decisões que afetam a companhia. Esse seria um primeiro passo absolutamente necessário em direção à democracia porque implica um equilíbrio de forças dentro da companhia. Para defender seus direitos, os trabalhadores se reuniriam em uma organização própria, em que manifestariam suas opiniões e defenderiam seus pontos de vista junto à diretoria. Nas empresas que possuem sindicatos, o caminho a ser trilhado para um sistema de bônus social é mais curto. E o governo central sempre estimulou isso, mesmo em companhias multinacionais. Em 2004, a rede de supermercados americana Wal-Mart foi forçada pelo governo chinês a instalar uma representação do sindicato dentro das lojas. O sindicato chinês dentro do Wal-Mart é a exceção em todas as filiais da rede no mundo.
Veja – Por que isso é importante?
Wang – Seria uma forma de promover a socialização do capital. No auge do governo socialista, falava-se que as estatais pertenciam ao povo. Na realidade, elas eram propriedade dos governantes e de seus diretores. Com as privatizações, tampouco podemos dizer que as companhias passaram a ser propriedade do povo. Em algumas delas, os antigos diretores se tornaram os donos. Em outras, as empresas passaram para as mãos de empresários estrangeiros, convidados a participar depois de tentativas fracassadas de vendê-las aos altos funcionários. Nos dois casos, ocorreram milhares de demissões e a população sofreu com o desemprego e o aumento na desigualdade entre ricos e pobres. O bônus social seria uma forma de compensar os trabalhadores que ainda permanecem nos seus cargos fazendo com que, enfim, eles possam ser donos dessas empresas. Além disso, essa seria uma maneira viável de criar um sistema de bem-estar social na China sem onerar demais o Estado.
Veja – O senhor sonha com um Estado de bem-estar social na China?
Wang – Todos gostaríamos de ter um Estado de bem-estar social como existe na Europa. Mas a China jamais poderá usufruir isso. Somos um país muito grande, com uma população enorme. Se insistirmos nessa questão, teríamos de construir um Estado gigantesco para dar conta desse contingente. Encontrar uma alternativa é um grande desafio e uma necessidade, porque o sistema de bem-estar social está em crise mesmo na Europa Ocidental e nos países nórdicos. Não é possível repetir ou copiar esse modelo. Precisamos criar nosso próprio caminho.
Veja – Para haver democracia, não seria necessário respeito aos direitos humanos?
Wang – Sim, mas é preciso tomar cuidado para não cair nos estereótipos quando se fala desse assunto na China. Um dos casos que mais ganharam repercussão no exterior foi o de um estudante universitário preso por engano em Guangzhou, em 2003, como sendo um migrante camponês sem licença. Até então, para evitar que a população rural invadisse as cidades, era preciso ter uma licença do governo para migrar. Na prisão, o jovem foi espancado até a morte. A notícia foi parar na internet e, em seguida, nos jornais de grande circulação. Depois de uma longa discussão entre a opinião pública e as autoridades locais, o governo central modificou a lei que autorizava essas detenções de migrantes e o registro de residência tornou-se mais brando. Foi uma clara vitória da participação democrática.
Veja – Como seria possível ampliar a participação democrática?
Wang – A democracia é bem-vinda e necessária. É uma ilusão pensar, no entanto, que com eleições livres poderemos facilmente resolver todas as questões. Não há, por certo, uma solução pronta. E é por esse motivo que os intelectuais chineses e toda a sociedade freqüentemente entram em debates infindáveis para tentar explicar ao resto do mundo a nossa realidade e a nossa história. A medida a respeito dos migrantes, por exemplo, também trouxe conseqüências negativas. Na seqüência, ocorreu um aumento radical da migração rural para áreas urbanas. Como não houve tempo hábil para a construção de escolas e hospitais nas regiões de destino, o êxodo elevou a criminalidade e os conflitos com moradores locais. Esse caso mostra bem como a situação é complicada.
Veja – O senhor liderou uma campanha contra a facilidade com que a China aplica a pena de morte. Quais foram as conseqüências?
Wang – Dois anos atrás, publiquei um ensaio pedindo a abolição da pena de morte. Em outubro, o Congresso Nacional do Povo decidiu reformar o sistema. A sentença de morte não será abolida, mas todas as sentenças decretadas pelas cortes locais deverão ser revistas pela corte suprema a partir de janeiro de 2007. Estão sendo treinados juízes especialmente para isso. A mudança na pena de morte só ocorreu porque há uma crescente interação entre a opinião pública e as autoridades. É um bom exemplo de como se deve evitar uma interpretação estereotipada da China. Os direitos humanos como um valor universal devem ser um objetivo a ser alcançado. Mas é preciso olhar esse assunto com cuidado. Os Estados Unidos publicam anualmente um relatório de direitos humanos que critica a China. Mas o tratamento que dão aos prisioneiros de guerra da base de Guantánamo e sua política de guerra no Oriente Médio os contradizem.
Veja – Por que o senhor acha que a transição chinesa para a democracia precisa ser lenta?
Wang – Temos de fazer uma transição gradual para evitar um caos generalizado. Ao mesmo tempo em que caminhamos em direção à democracia, precisamos tomar as medidas necessárias para evitar que o país seja controlado por uma grande oligarquia democrática. Muitas pessoas que ganharam posições no Partido Comunista são representantes das classes mais ricas, enquanto a maioria da população continua sem voz e sem representantes. O processo democrático chinês será árduo porque não existe um modelo que possa ser importado de um ou outro país sem importantes adaptações.
Veja – O primeiro passo não seria acabar com o regime de partido único existente na China?
Wang – A China tem hoje oito partidos formais, embora o Partido Comunista seja de longe o mais forte. Embora não haja um intenso debate programático entre eles, acredito que isso seja uma semente de democracia. A questão principal, contudo, é saber como tornar esse sistema mais aberto. Os partidos políticos, que deveriam ser a base de sustentação do regime, estão vivendo uma crise em todo o mundo. No período pré-eleitoral, quando estão procurando votos, os políticos defendem interesses diversos, às vezes conflitantes. Uma vez inseridos na estrutura de poder, essas diferenças são anuladas. O resultado é uma grande confusão ideológica. Na Europa Ocidental, algumas políticas que as pessoas imaginam de direita estão sendo adotadas pelo partido trabalhista ou pelos social-democratas.
Veja – A China cresce à taxa de 10% ao ano, enquanto o Brasil ficou perto dos 3% no ano passado. O senhor acha que seu país poderia ser um modelo para o Brasil?
Wang – Escutei muito essa idéia quando estive no Rio de Janeiro, meses atrás. O curioso é que, na China, se fala muito das lições que podemos tirar da América Latina. Em maio, alguns chineses viajaram ao Brasil para entender como funciona o sistema financeiro brasileiro, que é ágil e informatizado. Projetos sociais, como os que vi no Morro Santa Marta, no Rio, poderiam nos ensinar muitas coisas. Nas décadas de 70 e 80, o Brasil passou por um momento muito parecido com o que a China está vivendo hoje, com crescimento econômico acelerado e intensa migração interna para as áreas urbanas. O problema é que não há infra-estrutura para receber essas pessoas e, quando a economia reduz a marcha, a criminalidade explode entre os migrantes das cidades. No Santa Marta, fiquei comovido com os esforços da própria sociedade civil para levar luz elétrica às casas mais pobres, para promover o esporte e a educação. As soluções brasileiras inovadoras para lidar com a pobreza nas grandes cidades são úteis para a China porque precisamos saber o que fazer quando nosso crescimento econômico desacelerar. Ninguém pode nos garantir que ele vai se prolongar indefinidamente.
Veja – Que parte do milagre econômico chinês pode servir de lição para o Brasil?
Wang – A idéia de que o modelo da China pode ser copiado merece ressalvas. Não existe um modelo econômico único no meu país. As políticas públicas variam muito entre as regiões. Por fim, é preciso dizer que o crescimento do PIB não é uma boa referência. Muitos chineses estão apavorados porque a economia tem crescido rápido demais, o que aumentou a distância entre ricos e pobres e está ameaçando os recursos naturais. O PIB deveria subir mais devagar.
Wang – Somos um país populoso, e isso exerce uma pressão forte sobre a área destinada às florestas. Muito se tem falado na China sobre a idéia de construir um PIB verde, que leve em conta a poluição e evite a liberação dos gases do efeito estufa. Isso aparentemente teve boa aceitação no governo central. Com a reforma econômica dos anos 90, no entanto, a economia planejada deu lugar à descentralização e os governos locais ficaram mais fortes. Atualmente, para que uma política de desenvolvimento sustentável seja bem-sucedida seria indispensável que as províncias estivessem dispostas a isso. O fato é que elas ainda estão muito deslumbradas com o crescimento econômico. Nosso objetivo tem sido transformar o governo econômico em um mais preocupado com questões sociais.