Cristo é e seguirá sendo a principal referência
do que reconhecemos no Ocidente como a "nossa"
cultura. Católicos, protestantes, judeus, islâmicos,
budistas, espíritas, agnósticos, ateus – não importa.
Comungamos de um patrimônio que entendemos
como ideal de civilização e de justiça
Reinaldo Azevedo
Quando, no começo deste mês, arqueólogos do Vaticano desenterraram o sarcófago com os restos mortais do apóstolo Paulo, nascido no ano 10 e decapitado em 67, vinham à luz alguns séculos de civilização, de que a mensagem de Cristo é, a um só tempo, conseqüência e causa. Combatido, submetido ao obscurantismo politicamente correto e tomado como inimigo das minorias multiculturalistas – tão mais barulhentas quanto mais minoritárias –, o cristianismo, não obstante, guarda as chaves do humanismo moderno e da democracia e constitui o que o homem tem produzido de melhor em pluralismo, tolerância e, creiam!, avanço científico. "A humanidade produz bíblias e armas, tuberculose e tuberculina (...), constrói igrejas e universidades que as combatem; transforma mosteiros em casernas, mas nas casernas coloca capelães militares", escreveu o romancista austríaco Robert Musil (1880-1942) em O Homem sem Qualidades. Falamos de uma "civilização" que parece ser a improvável história de um permanente paradoxo. E, no entanto, ela avança, sempre duvidando de si mesma, mergulhada às vezes no horror, mas se recuperando, em seguida, para a maravilha.
Depois de Jesus, é Paulo que vem à luz como o homem mais importante do cristianismo, verdadeiro fundador da teologia cristã. Com um édito do imperador Constantino, em 313, a seita minoritária, nascida entre judeus da Galiléia, tornava-se uma das religiões do Império Romano. Cessava a perseguição ao cristianismo, e aquele foi um dos marcos da longa marcha que se anuncia acima. Como se operou o milagre? O sociólogo americano Rodney Stark sustenta que uma das raízes da expansão cristã é a caridade – elevada por Paulo à condição de primeira virtude. E a outra são as mulheres. Em The Rise of Christianity: a Sociologist Reconsiders History, Stark, professor de sociologia e religião comparada da Universidade de Washington, lembra que, por volta do ano 200, havia em Roma 131 homens para cada 100 mulheres e 140 para cada 100 na Itália, Ásia Menor e África. O infanticídio de meninas – porque meninas – e de meninos com deficiências era "moralmente aceitável e praticado em todas as classes". Cristo e o cristianismo santificaram o corpo, fizeram-no bendito, porque morada da alma, cuja imortalidade já havia sido declarada pelos gregos. Cristo inventou o ser humano intransitivo, que não depende de nenhuma condição ou qualidade para integrar a irmandade universal. As mulheres, por razões até muito práticas, gostaram.
No casamento cristão, que é indissolúvel, as obrigações do marido, observa Stark, não são menores do que as das mulheres. A unidade da família é garantida com a proibição do divórcio, do incesto, da infidelidade conjugal, da poligamia e do aborto, a principal causa, então, da morte de mulheres em idade fértil. A pauta do feminismo radical se volta hoje contra as interdições cristãs que ajudaram a formar a família, a propagar a fé e a proteger as mulheres da morte e da sujeição. Embora a cultura helênica, grega, matriz espiritual do Império Romano, tenha sido fundamental na expansão do cristianismo, o mundo estava diante de uma nova moral. Quando Constantino assina o Édito de Milão, a religião dos doze apóstolos já somava 6 milhões de pessoas.
Stark demonstra ser equivocada a tese de que aquela era uma religião apenas dos humildes. O "cristianismo proletário" serve ao proselitismo, mas não à verdade. A nova doutrina logo ganhou adeptos entre as classes educadas. Provam-no os primeiros textos escritos por cristãos, com claro domínio da especulação filosófica. Mas não só. Se o cristianismo era uma religião talhada para os escravos – "os pobres rezarão enquanto os ricos se divertem" (em inglês, dá um bom trocadilho: "the poor will pray while the rich play") –, Stark prova que o novo credo trazia uma resposta à grande questão filosófica posta até então: a vitória sobre a morte.
Outro mito diz respeito a um suposto cristianismo pastoril e antiurbano. Nos primeiros séculos, ao contrário, a fé se espalhou justamente nas cidades. Um caso ilustra bem o motivo. Entre 165 e 180, a peste mata, no curso de quinze anos, praticamente um terço da população do império, incluindo o imperador Marco Aurélio – o filme Gladiador mente ao acusar seu filho e sucessor, Cômodo, de tê-lo assassinado. Outra epidemia, em 251, provavelmente de sarampo, também mata às pencas. Segundo Stark, amor ao próximo, misericórdia e compaixão fizeram com que a taxa de sobrevivência entre os cristãos fosse maior do que entre os pagãos. Mais: aqueles acreditavam no dogma da Cruz e, pois, na redenção que sucede ao sofrimento. O ambiente miserável das cidades, de fato, contribuía para a pregação da fraternidade universal: os cristãos são os inventores da rede de solidariedade social, especialmente quando começaram a contar com a ajuda de adeptos endinheirados e, nas palavras de Stark, "revitalizaram a vida nas cidades greco-romanas". Os cristãos inventaram as ONGs – as sérias. Essa dimensão do cristianismo, que só pode existir se vivenciada na prática, está em Paulo. Hora de voltar a ele.
"POR QUE ME PERSEGUES?"
Foi em Antioquia (At, 11: 26), na Síria, que uma comunidade, pela primeira vez, designou-se "cristã", justamente os convertidos de origem pagã. E é dali que o cristianismo se espalhou pelo antigo mundo helênico, então romanizado. Em At, 11:1-3, São Pedro, considerado o fundador da Igreja, é censurado por seus pares: "Entraste na casa de homens não circuncidados e comeste com eles". Pedro responde que o fez por inspiração divina. O momento em que o cristianismo deixa de ser o credo de um grupo minoritário de judeus da Palestina para ser a religião de todo e qualquer homem "que aceite a salvação" tem um símbolo: a conversão de Saul, que aparece como "Saulo" nas versões em português da Bíblia.
Ele houvera recebido a incumbência de ir a Damasco e conduzir presos a Jerusalém "quantos encontrasse daquela profissão" (os cristãos). Na estrada, "cercou-o uma luz vinda do Céu. E, caindo em terra, ouvia uma voz que lhe dizia: 'Saul, Saul, por que me persegues?'. Ele disse: 'Quem és tu, Senhor?'. E Ele lhe respondeu: 'Eu sou Jesus, a quem tu persegues'" (At, 9: 3-5). Em Damasco, aonde fora conduzido cego, Saul recebeu Ananias, um convertido, que o curou pela imposição das mãos, inspirado por Jesus. O Filho de Deus vê em Saul "um vaso escolhido" para levar o seu nome "diante das gentes, e dos reis, e dos filhos de Israel" (At, 9:15). Nascia, assim, o Apóstolo dos Gentios, cujo nome cristão passa a ser "Paulo". E nascia o cristianismo como religião universal.
Coube a esse fariseu convertido romper os laços com a tradição judaica. O batismo mimetizaria a própria morte e ressurreição de Cristo. Por meio dele, morria-se para o passado e nascia-se para uma nova vida. Na Primeira Epístola aos Coríntios, escreve: "Num mesmo espírito fomos batizados todos nós, para sermos um mesmo corpo, sejamos judeus, ou gentios, ou servos, ou livres: e todos temos bebido em um mesmo espírito" (I Cor, 12:13). Paulo dá ordenamento à mensagem de fraternidade universal de Cristo e antevê a comunidade dos homens não mais separados por credo, raça ou, note-se, história pessoal. Junto com o batismo, está a eucaristia: "Porventura o cálice da bênção não é a comunhão do sangue de Cristo? E o pão não é participação do corpo do Senhor?" (I Cor, 10:16).
Paulo está para o cristianismo como Maquiavel para o realismo político. Se conferia dimensão mística à coletividade, era o profeta da Graça divina tornada uma rebelião individual: a redenção se dá por meio da fé. Se ele recomenda, em Rom, 13:7, que os impostos sejam pagos, o imperativo da fé traz a semente de uma subversão. Segundo ele, só por meio da lei (referia-se à lei divina), ninguém se justifica diante de Deus. Paulo foi um gênio político, e suas escolhas determinaram a capacidade do cristianismo de se adaptar aos desafios que lhe são contemporâneos sem abrir mão dos princípios. Sua teologia está centrada na certeza da ressurreição, que prova a divindade do Cristo. Por isso, é também o mensageiro da parúsia, da segunda vinda do Messias. Mas o que fazer enquanto Ele não volta?
A parúsia devia gerar uma espera angustiada e frustrada. Cumpria ordenar a vida dos cristãos. Na Segunda Epístola aos Tessalonicenses, ele recomenda: "Não comemos de graça o pão, mas com nosso trabalho e fadiga. (...) se alguém não quer trabalhar, não coma" (2 Tes, 3:7-10). Antes de Milton Friedman, Paulo já sabia que não existe almoço grátis. Nem salvação. As religiões não cristãs da Antiguidade davam grande ênfase ao "entusiasmo", ao arrebatamento religioso. Ele se dirige aos Coríntios e estabelece uma hierarquia no que chama "corpo místico de Cristo": "Se eu falar a língua dos homens e dos anjos e não tiver caridade, sou como o metal que soa (...). E se eu tiver o dom da profecia e conhecer todos os mistérios (...) e se tiver toda a fé (...), e não tiver caridade, não sou nada" (Cor, 13:1,2). Preparava os cristãos para uma corrida de fôlego. E lembrava que o cristianismo supõe mais do que uma espera.
Cristo voltará à terra. Um dia. Os cristãos não renunciaram à parúsia. Mas os contemporâneos, notadamente os católicos e os protestantes históricos, tendem a considerar que o acontecimento escatológico, finalista, de certo modo, já aconteceu. A luta final do Bem contra o Mal perdeu seu acento místico e seu caráter temporal para ser uma espera simbólica. Esse Cristo laicizado está prenunciado no próprio Paulo. Como demonstra Stark, o cristianismo se consolida nas cidades greco-romanas como religião da solidariedade. E, modernamente, com certo risco para o próprio credo, vê mitigada a sua dimensão sagrada para se transformar num código civil, íntimo das sociedades democráticas. A Igreja dos Gentios se torna uma comunidade em favor da universalização de direitos.
OCIDENTE GRECO-CRISTÃO
Cristo e o cristianismo seguem como as principais referências da civilização ocidental. De tal sorte é assim, que nem pensamos nisso. Culturas vitoriosas são estáveis, pacíficas, civilistas e até um tanto frívolas na proteção dos seus fundamentos. Quem viu o papa Bento XVI, na Turquia, orando como oram os muçulmanos assistiu à presença serena de um pastor que não duvida da natureza inclusiva do seu credo. O cristianismo, na sua manifestação mais poderosa, a Igreja Católica – 1,098 bilhão de pessoas, segundo o Anuário Pontifício de 2006 –, voltava a Paulo. Se não mais para converter, para compreender. Estima-se que um terço da humanidade – 2,1 bilhões de pessoas – seja cristão.
É claro que o que vai acima se presta ao contencioso. Especialmente num tempo em que toda evidência serve à contestação. As culturas vitoriosas dão à luz os críticos de seus próprios fundamentos. É a melhor evidência de um triunfo. Assim, haveria ali a indisfarçável afirmação da supremacia de uma visão de mundo. Cristo é e seguirá sendo a principal referência do que reconhecemos no Ocidente como a nossa "cultura" porque somos todos cristãos. Se não formos pela fé, seremos pela história; se não formos porque devotos da Revelação, seremos porque caudatários de uma revolução. Cristãos, ateus, judeus, islâmicos, budistas, materialistas, espíritas, agnósticos, comungamos de um patrimônio que entendemos como um ideal de civilização e de justiça.
Se o cristianismo conferiu uma ética nova, como se viu, à cultura greco-romana, tomou dela emprestados alguns séculos de especulação filosófica. De sorte que se constituiu, no tempo, como a memória de dois humanismos, de duas visões totalizantes: a helênica – grega – e a dos Evangelhos. Apostamos nas virtudes do exame de consciência; estamos ocupados em controlar nossos impulsos para ser reconhecidos como pessoas a serviço do bem e da verdade; esforçamo-nos para demonstrar que preferimos ser colhidos pela injustiça a praticá-la; aspiramos a valores espirituais acima dos materiais e apreciamos tal qualidade nos outros; boa parte de nós acredita numa justiça divina que sucede à morte, e os que não chegam a tanto demonstram seguir um modelo perfeito ao menos na idéia. Somos, de fato, não só cristãos, mas também herdeiros involuntários do filósofo grego Platão (428-348 a.C.). E onde essas idéias não se transformaram em leis, em códigos leigos, o poder se impõe pelo terror, pela ditadura, pela violência institucionalizada, pela morte – e, freqüentemente, assim se procede "em nome de Deus". Não há humanismo leigo que tenha sido tão poderoso na história humana quanto três palavras que salvam: consciência, arrependimento e perdão.
A referência a Platão ilumina o debate. Se, do ponto de vista da origem histórica, faz sentido falar em um mundo "judaico-cristão", no que concerne à religião e à filosofia, o que ganhou o mundo foi o helenismo cristão. O Império Romano helenizado havia abolido as fronteiras, estimulado a especulação filosófica, reconhecido a cidadania dos povos conquistados, estabelecido o ideal – e só o ideal – de uma humanidade fraterna, com a qual sonhavam os filósofos.
Richard Tarnas, autor de A Epopéia do Pensamento Ocidental, nota que a abertura do Evangelho de João – "No princípio era o Verbo" – remete ao "logos universal da filosofia grega", isto é, a uma espécie de inteligência cósmica, que "transcendia todas as oposições e imperfeições aparentes". Isso pressupunha a existência de uma Razão, de um cosmo universal, potencialmente alcançável por qualquer homem, independentemente de sua origem. O judeu Fílon de Alexandria, que nasceu entre os anos 15 e 10 a.C. – contemporâneo de Jesus e de Paulo –, falava de uma certa "idéia das idéias", fonte da inteligibilidade do mundo. Sem Alexandre Magno (356-323 a.C.), educado pelo filósofo Aristóteles (384-322 a.C.), e o Império Romano, com a sua paz duradoura, talvez o cristianismo tivesse ficado restrito à Galiléia. Não faz sentido contar a história que não houve, mas é preciso que nos coloquemos uma questão: por que a doutrina se difundiu e se tornou hegemônica além das fronteiras da Palestina sem que tenha, em sua própria terra de origem, suplantado o judaísmo, de onde derivou?
Os primeiros cristãos de Jerusalém, nota o historiador romeno naturalizado americano Mircea Eliade (1907-1986) em História das Crenças e das Idéias Religiosas, eram judeus de Jerusalém que "constituíam uma seita apocalíptica dentro do judaísmo palestino". Eles "estavam na espera iminente da segunda vinda do Cristo". A ekklesía (termo grego que designa igreja) cristã nasce no Dia de Pentecostes. Em Atos dos Apóstolos, lemos que os discípulos de Jesus estavam reunidos quando, "de repente, veio do Céu um estrondo (...) e lhe apareceram umas línguas de fogo, e pousou uma sobre cada um deles (...) e começaram a falar em várias línguas" (At, 2: 1-4). Pedro então conclama os varões de Israel à conversão: "Saiba logo toda a Casa de Israel, com a maior certeza, que Deus o fez não só Senhor, mas também Cristo a este Jesus" (At, 2:36). Khristós, em grego, significa "o Ungido", o "Messias".
O Pentecostes era uma festa religiosa dos judeus, inicialmente ligada à colheita e depois à entrega da Tábua das Leis no Monte Sinai. O início da igreja cristã assiste, como se vê, a uma manifestação análoga àquela fundadora para o judaísmo: segue a tradição mosaica – do patriarca Moisés –, embora a hierarquia religiosa judaica fosse hostil aos apóstolos. Uma hostilidade que era menor contra os hebreus locais do que contra os judeus "helenistas".
Os Atos relatam intrigas e falsos testemunhos contra inocentes acusados de blasfêmia. Ainda que as imputações fossem falsas, a verdade é que os cristãos helenistas resistem à herança rabínica do cristianismo da Palestina. Santo Estêvão, primeiro mártir da religião, desafia a hierarquia ao negar que Deus precisasse de um templo: "Mas Salomão lhe [a Deus] edificou a casa. Porém, o Excelso não habita em casas feitas por mãos humanas, como diz o profeta" (At, 7: 47-48). Ele é martirizado e tem início uma grande "perseguição à Igreja". Em At, 8:3, está presente o grande artífice do cristianismo, mas ainda como inimigo dos cristãos: Paulo, protagonista desta história.
O cristianismo como uma ética das relações foi, sustenta Rodney Stark, um dos fatores de seu enraizamento na Antiguidade e de sua expansão em todas as classes e grupos sociais, com especial ênfase entre as mulheres. Se a visão de mundo cristã não era avessa ao "logos" grego, como aqui se escreveu, emprestava à família um acento estranho àquela cultura, o que foi logo percebido pelas mulheres. Elas, como sói acontecer, identificaram primeiro o amor de salvação.