Entrevista:O Estado inteligente

domingo, dezembro 24, 2006

FERREIRA GULLAR Natal em cana




Para encher o tempo, que não passava, sugeri que cada um contasse episódios interessantes

O GOLPE militar, que pôs abaixo o governo constitucional de João Goulart, em 1964, tomou muita gente de surpresa, inclusive a mim, que acreditava ter o presidente o controle das Forças Armadas. No entendimento de boa parte da esquerda, os militares golpistas eram uma minoria. Ao que tudo indica, não eram e, assim, da noite para o dia, vimos instalar-se no país um regime autoritário que, pouco a pouco, foi estreitando a margem de liberdade dos cidadãos.
Era natural que as diferentes tendências da esquerda brasileira, após o susto inicial e a perda de posições legais, se reorganizassem na clandestinidade e procurassem paulatinamente articular a resistência contra o avanço do autoritarismo. Mas a luta não se limitou à resistência clandestina, já que, em diferentes níveis, estudantes e intelectuais se dispuseram a lutar abertamente pelas liberdades democráticas, que o regime militar limitara.
Como tantos outros escritores e artistas, tomei parte nessa luta, especialmente como um dos fundadores do Grupo Opinião, cujo teatro, à rua Siqueira Campos, tornou-se uma espécie de centro de resistência ao regime autoritário. Ali, realizávamos reuniões semiclandestinas para fazer face às arbitrariedades da censura e dos agentes da ditadura.
Outro centro de resistência era a editora do Ênio Silveira, que reunia um grupo de intelectuais de alto nível. Eles fundaram a revista "Civilização Brasileira", que desempenhou papel importante na formação de uma consciência antiditadura e na ampliação da luta contra o cerceamento do direito de expressão.
Ao regime militar não interessava assumir abertamente seu caráter ditatorial. Por isso, mantivera aberto o Congresso Nacional e a realização de eleições diretas para parlamentares, prefeitos e governadores, mas não para presidente da República, que era imposto à aprovação do Congresso pelo comando militar do regime. Os jornais circulavam, mas os censores se instalaram dentro das Redações; os teatros funcionavam, mas os espetáculos eram mutilados e, às vezes, proibidos.
Enquanto isso, a casa dos militantes anti-regime era invadida e os líderes da resistência presos sem ordem judicial. Foi numa dessas que levaram de minha casa os originais de um livro sobre arte contemporânea, intitulado "Do Cubismo à Arte Neoconcreta", na suposição de que se referia a Cuba. Esse fato tornou-se uma piada que correu o mundo inteiro.
Em 13 de dezembro de 1968, com a decretação do Ato Institucional nº 5, centenas de opositores do regime foram presos, eu entre eles. Fui levado para um xadrez na Vila Militar, onde encontrei outros detidos, inclusive um pobre homem que, por azar, chamava-se Antônio Callado. Ele passava os dias preocupado com seu cachorro de estimação que, segundo afirmava, sofria dos mesmos males que o dono, e, por isso, tomava os mesmos remédios; temia que sua mulher, teimosa, não estivesse dando os medicamentos ao animal. Outro preso, um nordestino que nada sabia de política, dera o azar de alugar uma casa que servira de "aparelho" a um grupo da esquerda radical. Os outros eram mesmo militantes, sendo o mais velho, seu Euclides, partidário da luta armada e trotskista até a medula. Certa manhã, veio juntar-se a nós Paulo Francis, pego ao voltar de Nova York, ou seja, do Waldorf Astoria diretamente para nosso xadrez em Realengo.
Para encher o tempo, que não passava, sugeri que cada um de nós contasse episódios interessantes de sua vida ou que haviam dado motivo à prisão. Jorge, que era agrimensor, contou que havia sido preso como guerrilheiro porque encontraram em sua casa uma barraca de lona e uma espingarda do papo-amarelo, que nem atirava mais. Engraçado foi seu caso com uma macaca, que gamou por ele e passou a segui-lo por toda parte, na mata.
Trouxeram para nossa cela um diplomata que, nos primeiros dias, manteve-se com paletó e gravata, mas terminou ficando apenas de cueca, quando o calor aumentou. Francis fez o mesmo. De minha parte, evitava preocupar-me com o desfecho daquela situação, apesar dos boatos de um soldado sacana que tentava nos assustar, dizendo que iam fuzilar os prisioneiros políticos.
Passei aquele Natal em cana. Na casa de dona Julieta, matriarca da família com quase cem anos, o pessoal não sabia como explicar-lhe a minha ausência. Quando alguém perguntou por mim e ela levantou a cabeça, atenta, Teresa explicou-lhe, com muito jeito, que eu estava preso na Vila Militar.
-E eu com isso? resmungou ela, servindo-se de rabanada.

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