Washington Novaes*
Pena que, na véspera do Natal, a comunicação tenha ocupado quase todo o espaço do noticiário do evento promovido pelo Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis, com a presença do presidente da República, para informações a respeito de dossiês e escândalos eleitorais. Poderia ter começado lembrando o papel desempenhado pelos catadores. Graças a eles, que trabalham dia e noite, sob sol e chuva, sem garantia de remuneração ou proteção social, o País consegue reciclar uns 30% do papel e papelão, uns 20% do plástico, mais de 90% das latas de alumínio, além de vidro, metais, etc. Não fossem eles, nossas cidades viveriam muito mais emporcalhadas pelo lixo, com as redes de drenagem mais entupidas, os rios mais assoreados.
O espaço poderia ter sido aproveitado também para discutir a precaríssima situação do País nessa área. Das 289 mil toneladas diárias de resíduos domiciliares e comerciais produzidas, segundo o IBGE, apenas 92,4 mil têm destinação "adequada"; mais de 40 mil, "relativamente adequada"; e 135,9 mil toneladas diárias vão para lixões (estima-se que umas 20 mil toneladas não sejam sequer recolhidas). E isso sem falar nos entulhos, no lixo de estabelecimentos de saúde, industrial, lixo tecnológico, etc.
Num quadro dramático como esse, dever-se-iam discutir as possibilidades de avanços, principalmente criando mecanismos para entregar uma parcela cada vez maior da coleta seletiva e da reciclagem do lixo a cooperativas dos catadores, para que se esqueça a estatística lamentável que aponta a reciclagem de apenas 1% do lixo recolhido. Além de gerar trabalho e renda para áreas carentes, reduzir-se-ia a influência de muitas empresas freqüentadoras do noticiário sobre escândalos no financiamento de campanhas eleitorais - como tem acontecido. E que têm interesse em que haja mais lixo, porque recebem por tonelada recolhida.
Hoje, com as 270 mil toneladas diárias recolhidas, as prefeituras gastam uns R$ 10 milhões por dia no País (atribuindo um valor médio - baixo - de R$ 40 por tonelada). Serão uns R$ 3 bilhões por ano, sem falar no custo dos aterros e na limpeza de ruas. Se o poder público reservasse parcelas progressivas da coleta e transformação para as cooperativas - ajudando-as inclusive na implantação das usinas de reciclagem e na compra de equipamentos de coleta -, poderia dar um passo importante rumo ao cumprimento dos objetivos de uma boa política de lixo: reduzir a quantidade de resíduos produzida, ampliar a reutilização e a reciclagem de materiais, diminuir a quantidade de lixo que vai para aterros ou lixões.
Por este último ângulo, seria um avanço em momento crucial. Curitiba está com seu aterro sanitário tecnicamente esgotado; São Paulo em prazo curto não terá mais onde depositar suas 15 mil toneladas diárias de lixo domiciliar e comercial (o aterro Bandeirantes está esgotado, o São João esgota-se no final de 2007); o Rio de Janeiro utiliza aterros na Baixada Fluminense, já em situação precária; Belo Horizonte e Recife não têm situação melhor.
Na área dos catadores, algum progresso foi feito com duas recentes decisões presidenciais, que abriram linhas de crédito do BNDES para cooperativas e determinaram a implantação de programas de coleta seletiva nas repartições federais, com os resíduos destinados a cooperativas. Mas são áreas em que geralmente se leva muito tempo para sair do papel para a realidade.
Talvez um dos melhores exemplos dessa dificuldade seja exatamente o projeto de Política Nacional de Resíduos Sólidos, que se arrasta no Congresso Nacional. Agora, tem uma versão aprovada pelo Senado, à espera de manifestação da Câmara dos Deputados.
É uma área em que costuma ser fortíssima a atuação dos lobbies setoriais. Tanto que inviabilizou dispositivos importantes previstos num projeto anterior: a responsabilização do produtor de embalagens de qualquer tipo pela destinação dos resíduos; a coleta seletiva obrigatória em cidades de mais de 100 mil habitantes; a proibição parcial (em eventos e locais abertos) de uso de embalagens de alumínio em cervejas e refrigerantes - entre muitos outros.
O projeto que passou pelo Senado e depende da Câmara proíbe a importação de pneus usados (ao contrário do que desejam muitos parlamentares) e o lançamento de resíduos em recursos hídricos e a céu aberto, bem como sua incineração; e cria o Fundo Nacional de Resíduos Sólidos, com a participação de ministérios e dotações orçamentárias. Resta ver, se passar pela Câmara, o que sairá mesmo do papel. Os municípios e o Distrito Federal serão os titulares dos serviços.
De qualquer forma, a votação do item sobre importação de pneus usados será um teste interessante. O País está importando por ano mais de 10 milhões de pneus usados da Europa, para "remoldagem", embora se diga que mais de metade nem sequer é utilizada. São vendidos a preços ínfimos pelos europeus, que têm de dar destinação a 200 milhões de pneus velhos por ano e não podem mais depositá-los em aterros. Para resolver o problema, recorrem ao que tem sido chamado de "colonialismo da imundície", a exportação das piores frações de seu lixo (outra é o lixo tecnológico). E têm o desplante de apresentar queixa contra o Brasil na Organização Mundial de Comércio (OMC), sob a alegação de que o País está, nessa matéria, criando "barreiras ilegais" ao comércio. Este jornal já apontou (12/12) a "ambigüidade" com que o governo federal se vem conduzindo nessa matéria. Inclusive no Congresso Nacional.
Já passou da hora de avançar na questão do lixo, um dos nossos principais dramas urbanos.