Pesquisas mostram que a amizade
turbina carreiras, melhora a saúde
e até prolonga a vida
Daniela Pinheiro
|
Uma das obras-primas do escritor americano John Steinbeck (1902-1968), o livro Ratos e Homens é uma saga sobre a luta de dois sujeitos em busca do sonho americano, mas acima de tudo é um relato contundente sobre a necessidade atávica do ser humano de ter amigos. É o exemplo acabado de como a amizade pode ser uma das mais poderosas forças de transformação de uma sociedade. Ela é capaz de mudar trajetórias, encorajar decisões e iluminar pensamentos. É com os amigos que se espera comemorar um sucesso ou lamentar um fracasso. É com eles que valores, experiências e interesses são compartilhados sem cobrança ou obrigação. Com o apoio dos amigos, diz-se, tudo dá certo. O que sempre inspirou escritores, pensadores e filósofos passou a ser medido por estatísticas. Dezenas de estudos dos mais respeitados centros de pesquisa do mundo constatam que a amizade influencia de maneira ainda mais decisiva do que se supunha a vida pessoal e profissional de cada um. Está provado que um sólido círculo social é capaz de evitar doenças, amenizar o sofrimento, prolongar a vida, catapultar carreiras e até mesmo melhorar a forma física.
Um dos maiores levantamentos já feitos sobre o efeito das amizades na vida prática é do pesquisador americano Tom Rath, coordenador de pesquisas da Gallup Organization, um dos maiores institutos de pesquisas do mundo. Rath se valeu de parte do banco de dados da instituição – foram cerca de 9 milhões de entrevistas feitas em 114 países – para identificar a relação entre amizade e satisfação profissional. O resultado está no livro O Poder da Amizade, lançado no fim do mês passado no Brasil pela Editora Sextante. Segundo ele, quem tem um grande amigo no trabalho é sete vezes mais produtivo, mais criativo e mais engajado nas propostas da empresa do que aquele funcionário que não consegue se relacionar com os colegas. Quem tem três bons amigos apresenta 88% de chance de ser mais feliz na vida pessoal do que o sujeito isolado ou tímido. Só o fato de ter amizades sólidas com os colegas de escritório aumenta em 50% a satisfação do empregado.
A maioria das pessoas passa no trabalho 70% do tempo em que estão acordadas. Quem trabalha fora costuma conviver mais com os colegas e com o chefe do que com a própria família. Portanto, ter alguém com quem conversar, trocar confidências, pedir conselhos ou mesmo partilhar um olhar de cumplicidade faz toda a diferença. "Um amigo verdadeiro faz do trabalho um lugar muito mais tolerável", disse Rath a VEJA. Amigos têm a capacidade de inspirar e instigar o outro, seja para desenvolver talentos pessoais seja para fazê-los perceber as próprias habilidades. Estudos relevantes mostram que o chamado "efeito bebedouro", o ato de trocar opiniões com o colega fora da sala, é um grande manancial de idéias. Pesquisadores do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), em um estudo com engenheiros, descobriram que 80% das novas sugestões são resultado de um contato ao vivo. A situação oposta tem efeitos negativos. A chance de quem não tem amigos no escritório se empenhar em um projeto é de uma em doze.
Quando fala em "grande amigo", Rath se refere a alguém com quem realmente se possa contar. Não é apenas o sujeito com quem se toma um café ou se faz uma piadinha sobre o chefe. É aquela pessoa para quem se pode telefonar e perguntar: "O que você faria nessa situação?". E que, com certeza, vai responder com sinceridade, mesmo que a opinião desagrade ao interlocutor. Essa ligação cria uma aura de segurança essencial para suportar as pressões profissionais. O amigo pode até desconhecer detalhes da vida íntima do outro, mas é um porto seguro para enfrentar intempéries da carreira. É o que a americana Jan Yager, que já escreveu uma dezena de livros sobre o assunto, chama de workship (neologismo criado a partir das palavras trabalho e amizade), uma relação que significa mais do que um contato social, porém menos do que um amigo de infância. "É um fenômeno novo. Estabelece limites seguros em relações profundas. Acredito ser ainda melhor do que uma amizade tradicional, pois existe uma tênue distância que preserva o relacionamento das confusões trazidas pela intimidade completa", disse ela a VEJA.
Foi Santo Agostinho quem disse ser a amizade "tão verdadeira e tão vital que nada mais santo e vantajoso se pode desejar no mundo". Em sua Ética a Nicômaco, Aristóteles, que discorreu longamente sobre o tema há mais de 2 000 anos, a define como essencial a uma boa vida e a distingue em três tipos: a baseada na utilidade, no prazer ou, de forma mais perfeita, na virtude, que é a amizade entre os sábios. Uma visão mais radical foi proposta por Sigmund Freud (1856-1939), criador da psicanálise, que acreditava haver uma energia sexual permeando todos os relacionamentos amigáveis. O fato é que a história, tanto na ficção como na vida real, está repleta de exemplos famosos ilustrando diversos aspectos da amizade. Dos Três Mosqueteiros (leais) a Jules e Jim (amantes), de Batman e Robin (cúmplices) a Picasso e Matisse (rivais), relações firmes e constantes reafirmam a máxima de que o poder da amizade é capaz de superar dificuldades e aprimorar a vida pessoal de cada um.
Nos últimos anos, houve uma visível mudança em relação aos laços amistosos. Especialistas afirmam que a amizade passa por uma tremenda crise de identidade. No passado, a diversão se dava na companhia da família em aniversários, casamentos, festas de Natal e almoços de domingo. Hoje, os parentes têm seus próprios problemas e os casamentos já não duram tanto tempo. O afeto dos amigos se tornou uma espécie de refúgio. Assim, ampliou-se o conceito de amizade. Amigos para se divertir, para fazer coisas juntos, trocar experiências e conselhos, sem que haja um pacto de sangue envolvido, tornou-se algo extremamente desejável. "Eles são importantes porque funcionam como uma válvula de escape. Lidar com coisas profundas o tempo todo é pesado demais. É ótimo ter alguém para pedir conselhos, mas não precisar convidá-lo para jantar", afirma a psicanalista Magdalena Ramos, da Pontifícia Universidade Católica, em São Paulo.
Assim, certas amizades nem tão íntimas ou intensas passaram a ter papel relevante no que se refere à ascensão profissional. É o que no jargão corporativo se chama de networking. É uma maneira de as pessoas se ajudarem como ocorre em tantas outras esferas da vida. Contatos assim são fundamentais. Uma pesquisa da Catho com 18.000 profissionais mostra que 48% das contratações foram acertadas por meio da indicação de um conhecido. Outro levantamento, feito pela consultoria Lens & Minarelli, apontou que 70% das recolocações de executivos se dão pela mesma via. "Entre duas pessoas com o mesmo currículo e competência, certamente quem veio indicado leva vantagem", afirma Luiz Carlos Cabrera, diretor da consultoria de recursos humanos PMC Amrop International. O networking é diferente da amizade, mas também é oposto ao velho "QI" ("quem indica"), muito popular no passado, quando a burocracia sobrevivia à custa do apadrinhamento. Antes, bastava ter QI para conseguir um bom emprego. Hoje, tempos difíceis obrigam empresas a só contratar profissionais dentro do perfil adequado.
É curioso notar como o conceito de amizade no Brasil difere do dos países mais poderosos do Ocidente. A diferença cultural pode ser percebida na maneira como cada país encara as relações no trabalho. A antropóloga Claudia Barcellos Rezende, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, comparou as relações de amizade de trabalho no Brasil e na Inglaterra. No livro Os Significados da Amizade (Editora FGV), ela mostra que a dificuldade dos ingleses em se abrir com colegas se deve ao fato de que, para eles, é impossível relaxar diante de pessoas com quem se mantém uma relação profissional. No Brasil, ocorre o inverso. Aqui, a aproximação se dá muito rapidamente, mas arrefece com a mesma velocidade. "Para o brasileiro, a amizade é um termo elástico. Ela pode designar carinho e afeto, uma relação de confiança e até mesmo uma relação de simpatia apenas, como chamar o garçom de amigo, por exemplo", completa. É o que o historiador Sérgio Buarque de Holanda, ainda nos anos 30, já havia notado: o brasileiro tende a levar o comportamento privado para a esfera pública. Trata o chefe como se fosse um primo, e lida com um sistema de contatos em que impera o parentesco, o compadrio ou qualquer ligação pessoal que se sobreponha à lei. É o conhecido "Você sabe com quem está falando?", percebido anos depois pelo antropólogo Roberto DaMatta. Mas sua fidelidade a esses contatos é baixa.
As pesquisas mostram que, ao longo da vida, colecionam-se 400 amigos, mas mantém-se contato com menos de 10% deles. Em média, vive-se rodeado por trinta pessoas. Dessas, apenas seis são tidas como verdadeiros amigos. Adultos passam menos de 10% do tempo com os amigos. Crianças e adolescentes, cerca de um terço. Para a criança, os amigos da rua, do colégio ou do bairro são tão fundamentais na formação do caráter quanto a escola ou a família. Eles funcionam como um ponto de referência importante quando se está formulando uma maneira própria de ver o mundo ou de enfrentar situações novas. De acordo com a psicóloga e consultora educacional Rosely Sayão, toda criança ou adolescente chegam a uma fase em que é preciso se libertar um pouco da influência direta dos pais e estabelecer diálogos com seus pares. Nesse período de busca pela autonomia, os amigos passam a ser o principal ponto de apoio. Jovens costumam viver em grupos, compartilhar penteados, opiniões ou a maneira de se vestir. Essa influência horizontal é conhecida nos Estados Unidos como peer pressure, um tipo de aprendizagem pela imitação. Claro que dependendo do grupo ela pode até se desvirtuar para uma má influência, mas de forma geral é saudável na estruturação da personalidade de um futuro adulto.
Em qualquer idade, a amizade é tida como coisa seriíssima. Cerca de 60% das pessoas respondem que ter amigos é mais importante do que carreira, dinheiro ou família. Ainda assim, amizades verdadeiras estão cada vez mais difíceis. Um estudo publicado em junho pela Universidade Duke, nos Estados Unidos, mostrou que os americanos têm menos amigos hoje do que há 25 anos. Um em cada quatro afirma não ter alguém para conversar sobre assuntos pessoais. O isolamento pode ter conseqüências terríveis para a saúde física e mental. Está provado que ter a companhia de amigos reduz drasticamente o risco de depressão, ansiedade, stress e mesmo os sintomas degenerativos de doenças graves como Alzheimer. As pesquisas são explícitas ao mostrar como essas pessoas, sobretudo as mais velhas, se recuperam melhor de lesões, ficam menos doentes e até vivem mais do que as solitárias.
Uma das pesquisas mais reveladoras é a que estabelece uma relação direta entre ter amigos e viver mais. Como parte do trabalho denominado Estudo Longitudinal do Envelhecimento na Austrália, feito com 1.500 pessoas, idosos foram questionados sobre sua atividade social: quanto tempo passavam com filhos, netos e parentes, quantos amigos tinham e que tipo de atividade social exerciam. Nos anos seguintes, após as pessoas serem submetidas a diversas avaliações, os cientistas observaram que estatisticamente aquelas que tinham uma rede maior de amigos viveram mais. O contato com a família teve pouco impacto na longevidade. Outra novidade trata dos benefícios da amizade sobre males degenerativos, como o Alzheimer. Um estudo feito pelo Rush Alzheimer’s Disease Center mostrou, pela primeira vez, como pacientes diagnosticados com a doença e que viviam rodeados por amigos tiveram os sintomas amenizados. A avaliação dos autores da pesquisa é que as amizades formam uma espécie de "cápsula protetora" que retarda as manifestações da enfermidade. "É o que chamamos de a ‘mágica da amizade’, porque ninguém sabe exatamente como ela funciona", diz o médico Wayne Matthews, da Universidade do Estado da Carolina do Norte.
E por que isso acontece? Cientistas sugerem dois mecanismos. O primeiro é comportamental: família e amigos estimulam a comer melhor, beber e fumar menos, exercitar-se mais e procurar médicos com mais freqüência. É o que aponta outro dado do estudo do Gallup: se seu melhor amigo segue uma dieta saudável, a chance de você fazer o mesmo é cinco vezes maior. Além disso, o círculo social eleva a auto-estima, melhora o bem-estar e reforça os mecanismos de defesa em tempos difíceis. Em seguidos experimentos científicos, a presença de um amigo ao lado do voluntário diminuía o stress psicológico na hora de resolver questões que requeriam maior habilidade mental.
Para as mulheres, os efeitos da amizade parecem ainda mais visíveis. Mulheres costumam valorizá-la mais e ter mais amigas do que os homens. Segundo pesquisas, elas cultivam, em média, cinco grandes amigos. Homens, quatro. A cada estudo, foi sendo demonstrado que os laços emocionais que existem entre as mulheres que são amigas reais e leais contribuem para reduzir os riscos de enfermidades ao baixar a pressão arterial e o colesterol. Acredita-se que essa pode ser uma das razões pelas quais as mulheres vivem mais tempo do que os homens. Mulheres que confiam em suas amigas, diz pesquisa da Faculdade de Medicina de Harvard, superam mais facilmente momentos difíceis, como a morte do cônjuge.
Um ditado popular é freqüentemente evocado para explicar a teoria de que é possível nos reconhecer através de nossas amizades. "Diga-me com quem andas..." Na história recente do país, ele ilustra bem a situação do presidente Luiz Inácio Lula da Silva diante dos escândalos protagonizados por seus amigos pessoais, nomeados para funções de confiança no governo. Como dizia o cientista americano Benjamin Franklin (1706-1790), "só existem três amigos fiéis: uma velha esposa, um velho cão e dinheiro na mão". No caso, nada mais claro do que a terceira opção.
|
|
|
|
|