O Globo |
27/12/2006 |
"Oito dólares por semana ou um milhão por ano - qual a diferença? Um matemático ou um humorista lhe darão a resposta errada." O. Henry Quem ama os grandes autores talvez se lembre de um famoso conto de O. Henry (1862-1910), intitulado "The Gift of the Magi" ("O presente dos Magos"). Nele, trabalha-se, com rara sensibilidade, o tema do presente. Do dar, do receber e do retribuir dons, essa obrigação que se esconde por trás do papel brilhante e do barbante dourado da aparente espontaneidade que embrulha e anuncia as dádivas. Marcel Mauss desvendou essa teia oculta de obrigações num ensaio decisivo sobre o assunto. Desde então, pelo menos os antropólogos de uma certa tribo sabem que a vida social se faz por meio de contratos individuais, mas que essas autonomias sempre foram atrapalhadas e reescritas pela lógica das teias sociais imperativas que obrigam a dar (e, por isso mesmo, esperam) receber presentes. A história de O. Henry é uma reflexão sobre o tema, só que encenada numa Nova York capitalista e regida pelo abominável mercado que conduz à guerra de todos contra todos, não numa edênica aldeia isolada. Nela, a jovem Della se sente obrigada a dar um presente natalino para seu marido, Jim. Mas o problema é que não havia dinheiro para comprar uma dádiva que tivesse "o valor da honra de ser usado" pelo adorado consorte. Como resolver o dilema posto pelo desejo de dar algo digno, se não há dinheiro para o presente? A pobreza faz com que venha à tona não um futuro idealizado num crescimento que jamais chega, como ocorre em nosso país, mas os bens mais valiosos do casal. O relógio de ouro de Jim, herança de família, tanto mais virtuoso quanto mais o mundo urbano acaba com esses ultrapassados laços de sangue e de vida; e o cabelo castanho, longo e brilhante, que chegava até os joelhos, de Della. Coisa rara e igualmente obsoleta numa sociedade tocada à velocidade que nos obriga a cortar apêndices e a viver segundo a lógica implacável do utilitarismo que relaciona os meios e os fins. O olhar para dentro conduziu a solução. Della, cujos trocados não chegavam a "um dólar e oitenta e sete centavos", vende os cabelos e, por vinte e poucos dólares, compra uma rebuscada corrente de falsa platina para o relógio de Jim. Sem as longas ondas castanhas, ela fica parecida com uma corista barata, e o olhar de surpresa de Jim, quando chega em casa para comemorar o Natal, confirma os piores temores da esposa. Mas o ar atônito do marido não foi por causa do cabelo curto, mas pelo fato de ter comprado para a amada um caro e belo par de pegadores de casca de tartaruga, ornamentados com pedrinhas - um objeto desejado com intensa expectativa pela jovem mulher. Como usar o precioso presente numa cabeça ornada por cabelos curtos? O descompasso entre o agrado e o seu propósito confunde, promovendo um destoar decepcionante. Mas, conforme sabemos, os cabelos crescem, e assim disse a esposa, passando para as mãos do marido a corrente do relógio que, como manda o Natal moderno, ficaria completo com o adereço de falsa platina. Esses adereços da vida social que, graças ao gesto paradoxal dos reis Magos, esses aristocratas que entregaram dádivas para o menino da manjedoura, tornaram-se um costume no Natal. "Della" -- disse Jim, tomando consciência da situação -, "vamos colocar os presentes de Natal de lado e dar um tempo. Eles são bons demais para serem usados no presente momento: eu vendi o relógio para ganhar o dinheiro que comprou o seus pegadores." Para onde foram os caros presentes que os Reis Magos levaram para o menino Jesus? Eu sei para que servem os meus oito dólares por semana. Mas será que quem ganha milhões sabe para onde vai o seu dinheiro? Não estaria nesse desequilibrado embrulho entre o dar, o receber e o dar de volta o segredo das dádivas dos Reis Magos? Além do vergonhoso apagão aéreo, essa prova cabal de um governo autotravado, passaremos o Natal regurgitando um outro fato miserável: um vergonhoso e envergonhadamente suspenso (até o nosso eventual esquecimento) aumento salarial dos congressistas. A questão não está apenas no tamanho. O problema é saber o que esses engravatados com cara de cantores de bolero fizeram para merecer o presente. A decepção não é bem com a quantidade. Ninguém reclama ou se sente injustiçado com os ganhos extravagantes dos artistas, dos jogadores de futebol ou dos industriais. Sabe-se que ali há um equilíbrio entre o que dão e o que recebem. Fossem os nossos congressistas (com as honrosas exceções de praxe) honestos, dedicados, sinceramente preocupados com o bem da coletividade, menos mensaleiros e mais preocupados em honrar o amor que, por encargo e ética profissional, devem aos seus eleitores e ao Brasil, o aumento não seria tão problemático. Pois o dar deve ser proporcional ao receber. E o receber, neste Brasil carente de hoje, exige - sejamos afins com a generosidade estampada no conto de O. Henry - um pouco mais de sacrifício dos que vivem à custa e em torno do "povo" que dizem defender e, eis uma palavra detestável e verdadeira reacionária, cuidar! Esse sacrifício é, na realidade, o amor que carregamos (ou não) nos presentes que damos uns aos outros. E, sem os quais - hajam contratos, teorias e leis -, a sociedade simplesmente não funciona. Feliz Natal! |
Entrevista:O Estado inteligente
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quarta-feira, dezembro 27, 2006
ROBERTO DaMATTA Presente de Natal
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