Hoje os homens-bomba nascem em Belém
Pronto, passou o Natal. Graças a Deus, blasfemo eu. Todo mundo reclama do Natal, repararam? “Ah...porque no Natal aumenta o sentimento de culpa, a gente tem de agüentar a família e os traumas infantis, no Natal eu fico triste porque me separei do marido, o Natal é uma festa influenciada pelos americanos, com Papai Noel enchendo o saco em vez de esvaziá-lo, no Natal a gente engorda muito, comendo aquelas rabanadas e panetones, chega de Natal!”.
Todo mundo fala essas coisas mas, de noite, olham com ternura as bolinhas douradas da árvore, comem seus pedaços de peru, dizem que “adoraram o presentinho, coisa pouca, não leva a mal, mas essa caixa de sabonetes naturais é legal, adorei a água de colônia, esse CD não é pirata, não?” Eu já tive carnavais felizes, “sãos joões” felizes, mas não me lembro de uma grande “noite feliz, noite de paz”...
Lembro-me que no Natal, durante as ceias, eu via do meu canto de menino melancólico as ligações frágeis entre parentes, entre tios e primos, as antipatias disfarçadas pelos abraços frios e os votos de felicidades. O destino das famílias fica evidente no Natal. Os pobres se conformando com o tosco prazer dos presentes baratos, e os ricos querendo provar que serão felizes a qualquer preço. Canalhas e egoístas o ano inteiro, esfalfam-se para viver uma alegria compulsiva entre gargalhadas solidárias, beijos molhados de vinho e uísque, terminando nas tristes saídas na madrugada, com crianças chorando e presentes carregados com tédio por pais de porre, aos berros de “feliz Natal”.
Eu olhava aquelas famílias viajando no tempo como um cortejo trôpego, eu via a solidão de primos medíocres, das tias malucas, dos avós já calados e ausentes, o eterno presunto caramelado, o peru com apito.
Nessa época, lembro que alguns malucos do fim do Estado Novo lançaram uma campanha nacionalista para substituir o Papai Noel por um outro símbolo: o Vovô Índio — um velho silvícola seminu, com peninha na cabeça, que traria presentes para os curumins de verde e amarelo. Foi um tremendo fracasso, claro, numa época em que o cinema americano já mandava em nossas cabeças, com o Bing Crosby cantando “White Christmas” sem parar.
Papai Noel era invencível, se bem que eu nunca gostei dele.
Papai Noel sempre me intrigou. Quem era aquele sujeito que começava a aparecer no fim do ano, nas lojas, no rádio, na TV? Papai Noel tem muitas conotações desde que foi inventado na Noruega, por causa de São Nicolau, que ajudava as pessoas carentes nos fins de ano. Papai Noel é a metáfora de um pai bom, sem mãe por perto, é aquele que ri com carinho no “ho ho ho” cheio de tolerância. Papai Noel sempre foi uma imagem de perdão e carinho. Mas não para mim. Já contei isso uma vez. Para mim, Papai Noel era assustador.
Sim. Isso foi provocado por um sinistro estratagema de meu pai, que usava o Natal para me dar lições de moral. Papai Noel me dava os presentes, sim, mas sempre acompanhados de uma carta (escrita à mão, em tinta roxa) em que me fazia repreensões dolorosas: “Por que você desobedeceu sua mãe e matou a aula de piano? Por que você bateu na sua irmã com o espanador? Se você fizer de novo...
ano que vem tem castigo...” Cada presente aberto me dava um sentimento de culpa.
Daí, a conclusão infantil: Papai Noel gostava de todo mundo, menos de mim. Papai Noel foi meu superego de barbas brancas.
Talvez por isso fui o primeiro de minha turminha de subúrbio a desconfiar que Papai Noel era uma fraude. “Papai Noel não existe!” — foi meu grito revolucionário. “Existe, sim! Ele me deu um velocípede!” — bradavam os meninos obstinados em sua fé. “Ah, é? Então, fica acordado para ver se não é teu pai botando os presentes na árvore!” Mas meus amigos lutavam contra essa desilusão, mais ou menos como velhos comunas não desistem até hoje do paraíso comunista. Recorri a meu avô, conselheiro e aliado, e ele confirmou e apoiou meu agnosticismo natalino: “Não existe, não...Você não é mais neném...” Daí para a frente, não parei mais. Entrei de sola na lenda da cegonha e do bebê que “papai do céu mandou”... “Vocês pensam o quê? As mães de vocês ficam nuas, e o pai de vocês bota uma coisa dentro da barriga delas pelo umbigo...!” “A minha mãe, não!” — berravam os jovens édipos, partindo para a porrada de rua comigo. Daí para descrer de Deus foi um pulo, para o horror escandalizado dos colegas do colégio jesuíta. “Deus é bom, padre?” “Infinitamente bom...” “Ele sabe de tudo?” “Sim...” — respondiam os padres já desconfiados.
“Então, por que ele cria um cara que depois vai para o inferno?”. Até hoje ninguém me respondeu isso.
E assim fui, até começar meu ódio ao “imperialismo norte-americano” dos anos 60.
Hoje, vejo que o Natal perdeu aquela delicadeza antiga, com o fim das famílias nucleares.
Não temos mais chaminés nem ceias transcendentais. Em vez do saco de presentes, temos as calamidades coloridas dos shopping centers. Em vez da família reunida em torno do peru, vemos pobres e ricos solitários tentando recriar uma noite feliz nem que seja nos botequins e lanchonetes.
Hoje, no presépio de Belém, perto da manjedoura onde o menino Jesus recebeu os Três Reis Magos, nos lugares sagrados de Jerusalém, explodem os homens-bomba berrando “Feliz Natal, cães infiéis!”.
Hoje, Papai Noel vem com as renas de um Pólo Norte que está derretendo, pelo efeito estufa que o Bush se recusa a combater. Hoje, o Natal é uma lembrança do que tivemos. É uma festa nostálgica para o Ocidente, rachado ao meio pelos atentados.
Que estranho destino é esse da Humanidade se fechando como um anel, uma cobra mordendo o próprio rabo, a morte no mesmo lugar no nascimento, o perigo do fim da civilização no mesmo lugar onde ela começou, ali entre o Tigre e o Eufrates, ali, no Vale do Bekka.
Hoje, não tenho mais medo do Papai Noel; tenho até uma certa pena dele... e de nós.
Entrevista:O Estado inteligente
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