Entrevista:O Estado inteligente

sexta-feira, dezembro 22, 2006

Borat, o homem do ano

O homem do ano

O repórter cazaque Borat não choca por causa
de seu anti-semitismo e misoginia: ele choca
por mostrar como essas idéias são comuns


Isabela Boscov


Bertrand Guay/AFP
O meigo e ignorante Borat, criação do inglês Sacha Baron Cohen: sucesso num bar country com o refrão "jogue o judeu no poço"

Até o início deste ano, Borat Sagdiyev era "a sexta pessoa mais famosa do Cazaquistão", segundo sua própria contabilidade. Mas, no resto do mundo, era conhecido apenas dos fãs da série Da Ali G Show, que foi produzida pela rede HBO e na qual o comediante inglês Sacha Baron Cohen encarnava seus três personagens habituais – o rapper branco Ali G, o fashionista austríaco Brüno e o próprio Borat. Um amigável e entusiasmado repórter da televisão estatal cazaque, Borat é também, de uma maneira completamente inocente, um sujeito homofóbico, racista, misógino e um virulento anti-semita. Na abertura do hilariante Borat: Cultural Learnings of America for Make Benefit Glorious Nation of Kazakhstan (assim mesmo, no inglês estropiado do personagem), o filme que catapultou o fictício repórter para a notoriedade mundial em 2006, ele apresenta à platéia seu vilarejo natal no Cazaquistão e mostra com orgulho a principal festividade popular da região: a "corrida do judeu", na qual dois bonecos de nariz adunco e chifres na testa são perseguidos a pauladas pela criançada, que tenta destruí-los antes que o boneco-fêmea ponha um ovo. Soa ultrajante, e é. Mas Cohen não está pregando o anti-semitismo. O poder de choque e subversão de Borat é que, por causa de sua docilidade e estrangeirice, em suas andanças pelos Estados Unidos ele leva as pessoas a subestimá-lo e revelar aquilo que, se estivessem com o desconfiômetro ligado, fariam qualquer negócio para esconder.

Por razões inexplicáveis, Borat, que não pára de gerar manchetes (e, mais surpreendente, discussões) desde que foi mostrado no Festival de Cannes, deve ser lançado no Brasil apenas em fevereiro. Ninguém precisa esperar tanto, porém, para se inteirar do fenômeno: Borat, claro, é um ícone da internet. Só no YouTube há quase 6 000 clipes estrelados por ele. Vários são trechos do filme, como a cena na qual, depois de dar um beijo molhado e profundo numa moça, ele a apresenta como sua irmã – e "a quarta prostituta mais popular do Cazaquistão" (o repórter adora estatísticas). Outros clipes foram colhidos do Da Ali G Show. Um já virou clássico: em um bar country do Sul americano, a freguesia acompanha entusiasmada o cazaque no refrão do que ele diz ser uma canção típica de seu país – "joguem o judeu no poço".

Se Borat consegue extrair esse tipo de candura de seus interlocutores, é porque se trata de um personagem inexpugnável – ao menos para os cidadãos americanos, notoriamente pouco versados em costumes não-americanos. O bigodão de Borat é autêntico, e Cohen precisa de seis semanas longe do barbeador até que ele atinja a pujança ideal. O penteado frisadinho também é feito a partir dos fios do próprio comediante, que, ademais, nunca lava o indefectível terno azul-calcinha de Borat, para acentuar seu odor exótico. E Cohen nunca, em hipótese nenhuma, sai do personagem. Durante os cerca de dois meses de filmagem de Borat, ele teve algumas dezenas de encontros com a polícia. Em todos eles, agüentou o tranco até o fim, sem confessar a verdadeira identidade. Em pelo menos uma ocasião, essa obstinação o colocou em real risco de vida. Em um rodeio na Virgínia, ele leva a arquibancada primeiro ao êxtase ("que a América vença a guerra contra o terror, e que George W. Bush beba o sangue de cada homem, mulher e criança no Iraque!", conclama) e, depois, à fúria, quando encaixa um fictício (e absurdo) hino do Cazaquistão na melodia do hino americano. Observação: todo mundo na arquibancada tinha um revólver e a disposição de usá-lo, segundo o caubói veterano que ajudou Borat/Cohen a fugir inteiro – e que momentos antes, nos bastidores do rodeio, concordara com ele que a melhor maneira de lidar com homossexuais é enforcá-los.

Enforcamentos figurados são a especialidade de Sacha Baron Cohen: ele mostra a corda e suas vítimas correm para enlaçá-la ao pescoço, puxando o nó com a própria arrogância. O que torna Cohen irresistível, porém, é que ele de fato não tem barreiras: tanto entra em situações explosivas, como o rodeio, quanto se engaja no humor mais básico, tolo e, graças à sua meiguice, insanamente engraçado. Borat solta uma galinha no metrô de Nova York e os passageiros o olham (com razão) como se ele viesse de outro planeta; Borat tenta cumprimentar estranhos nas ruas da metrópole (na verdade, os persegue) e encontra tapas e safanões; Borat entra no elevador do hotel com um estupefato recepcionista e começa a abrir as malas, elogiando o conforto das instalações; Borat pergunta a uma consultora de etiqueta se é adequado mostrar fotos de família, e então saca da carteira um retrato das exuberantes partes pudendas de seu filho; Borat corre atrás de Pamela Anderson; Borat enfurece um grupo de feministas dizendo que um certo Doutor Yamuk, cientista oficial do governo cazaque, provou que o cérebro das mulheres é menor que o de um esquilo; Borat protagoniza uma luta obscena com seu produtor obeso (ambos nus em pêlo), que começa no quarto de hotel, avança pelos corredores e termina numa convenção de agentes de seguros. E Borat obtém de gente comum, sem nenhum esforço, declarações pró-extermínio e pró-escravidão, com o mesmo efeito alcançado pelas proezas anteriores – gargalhadas. Não há exagero em dizer que não há nenhum outro comediante em atividade hoje que seja tão destemido e que aborde com tamanha objetividade os preconceitos, mesquinharias e superstições que a linguagem politicamente correta oculta, mas não suprime.

Sacha Baron Cohen, de 35 anos, é filho de um casal ortodoxo. Ele próprio é judeu praticante, e graduou-se em história na Universidade de Cambridge com uma tese sobre o papel dos judeus nos movimentos americanos pelos direitos civis. Borat não é, portanto, fruto do acaso. É resultado de um projeto que visa mostrar, de forma sistemática, como o ódio não é propriedade dos que o propagam de forma ativa – é também fermentado e nutrido pelo conformismo e pela ignorância. Centenas ou até milhares de teses já foram escritos sobre esse tema. Nenhuma delas conseguiu desferir um golpe potente como o de Borat, que fez tanto sucesso na bilheteria quanto entre os advogados americanos que conduzem as diversas ações legais impetradas por pessoas que não gostaram de se ver, no filme, como de fato são. (Alguns dos processos já foram rejeitados pela Justiça americana. Motivo: os reclamantes assinaram um contrato de cessão de imagem. Não o leram antes de assiná-lo porque não acharam importante.)

O golpe foi sentido também, de forma colateral, pelas autoridades do Cazaquistão, que se horrorizaram em ver seu país retratado como uma terra de estupradores, prostitutas e deficientes mentais na jubilosa abertura do filme (rodada num vilarejo romeno, que também está processando o comediante). Os embaixadores cazaques nos Estados Unidos e na Inglaterra mandaram cartas de protesto a jornais, e o governo da ex-república soviética da Ásia Central publicou um anúncio turístico de quatro páginas no New York Times. Involuntariamente, acabou acrescentando à hilaridade, ao ressaltar, num texto que poderia muito bem ser de autoria de Borat, que o Cazaquistão tem "a maior população de lobos do planeta". Por fim, até o presidente sempre reeleito do país, Nursultan A. Nazarbaiev, entendeu que não eram os cazaques o alvo da piada, e passou a comemorar a nova visibilidade. A piada de Borat é que, se alguém acha que tem uma "lição cultural" a dar, é porque provavelmente é a última pessoa habilitada a fazê-lo.

O COMEDIANTE QUE NÃO TEM MEDO DE FAZER HUMOR


Fotos divulgação
HUMOR POLÍTICO
"Que George W. Bush beba o sangue de cada homem, mulher e criança no Iraque", diz o repórter cazaque num rodeio, arrancando aplausos da arquibancada


HUMOR RACIAL
Borat mostra sua atrasada aldeia no Cazaquistão, onde se pratica a "corrida do judeu" (abaixo): anti-semitismo na sua vertente clássica


HUMOR NONSENSE
Borat, o aldeão, bebe água da privada em Nova York: piadas vulgares também fazem parte (e como) do cardápio

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