Entrevista:O Estado inteligente

sexta-feira, dezembro 22, 2006

MILLÔR

A infância não, a infância dura pouco. A juventude não, a juventude é passageira. A velhice sim. Quando um cara fica velho é pro resto da vida. E cada dia fica mais velho.

A QUANTAS ANDAMOS
AONDE CHEGAMOS

Neste momento em que, afinal, aparecem algumas mulheres defendendo a preservação das rugas, e repudiam botoquicis e cirurgias deformantes, repito a minha posição desde os 20 anos de idade, quando comecei a envelhecer. Defendi isso, entre outros lugares, no belo livro do fotógrafo gaúcho Robinson ACHUTTI e no roteiro Últimos Diálogos, que escrevi para Walter SALLES.


Prefácio para FOTOGRAFIA, de Robinson Achutti

Mas olho, com ternura e profunda identificação, essa cara. E ela me olha, essa cara, não com a cara que tem quando anda pelas ruas, mas com a cara que a sensibilidade – do dedo, do olho, do psíquico? – do fotógrafo fixou. Com um pouco da crueldade de Lucien Freud no ato de apunhalar personalidades, muito do sentimento de Cartier-Bresson diante do trabalho de Munkacsi: "Me mostrou que o instante é a eternidade".

Mas sinto também, nesta foto, condolência e admiração, uma percepção reservada a muito poucos, a revelação do negativo da beleza. Olho nesses olhos que são os meus, e é como se eles me dissessem: "Qualquer idiota pode ser jovem. Em poucos anos se consegue isso. Mas caras jovens são fotograficamente aflitivas. Não têm biografia. Chapas sem emulsão. Lisas. Pois é preciso muito tempo para envelhecer. E muito talento. O supremo talento da sobrevivência".

Esta cara, vejam, olhem bem – o vendaval da vida passou por ela. A história da vida está toda escrita nas sombras e reentrâncias desta fisionomia. Não é só uma foto. É uma epopéia fisionômica.

Cara sulcada. Marcada pelo feliz sofrimento de continuar existindo.

Do roteiro Últimos Diálogos:

GONZAGA – Fui descobrindo uma forma de viver dentro e fora do viver normal. Descobri o Não. Que não precisava gostar de gato nem de cachorro (pega Cátia no colo), embora goste muito de Cátia, nem de celtas, escandinavos, políticos, gringos, negros e mulatos. Nem de mulatas, por falar nisso. Eu gostava, meu orgasmo!, era observar a servidão das pessoas à ditadura do gostar. Por que gostar? O que é gostar? Eu detestava – detesto! – classes, gregos, troianos, assírios, sergipanos, grã-finos, militares, acadêmicos e, mais que tudo, intelectuais. E não falo de falsos intelectuais. Falo dos de verdade. Inteligentes, finos, perspicazes, criativos. Falo dos mais admiráveis – que saco! São os piores. Quando não têm drama eles arranjam, os antigos eles conservam, relembram sempre, os que existem, ampliam, esmiúçam.

A humanidade é muito mais feliz do que os intelectuais descrevem. A tragédia é apenas um ou outro momento da história, em um ou outro pedaço da geografia. Tem gente que nasce, vive 70 anos, e morre sem o gozo e a glória de um instante dramático.

MARÍLIA – Morre feliz?

GONZAGA – Por aí. Só não consegui me libertar de gostar... dos velhos. Não consegui me livrar dos velhos. (Aponta, num canto, um pôster de Bertrand Russell.) Aos poucos, com o passar dos anos, eles vieram vindo. Começaram a me atrair, me atraem, estão em mim mesmo. Agora, coisa que não acontecia antes, gosto de mim. (CLOSE. Olha fixo na câmera, um tempo, como se estivesse se olhando num espelho.) Jamais me passaria dizer como aquele escritor, medíocre, aliás, esqueci o nome, que escreveu aquele romance... Esqueci também. (Bate na testa.) Como é mesmo o nome dele?

MARÍLIA – Com esses dados é impossível saber.

GONZAGA – Somerset Magoam! Aos 90 anos disse: "Tenho horror de olhar no espelho essa minha cara chinesa". O coitado não aprendeu nada. Qualquer idiota consegue ser jovem. É preciso muito talento pra envelhecer. Tudo que viveram está escrito nas sombras e desvãos das velhas fisionomias. Pessoas de 70, 80 anos, são epopéias fisionômicas. Caras jovens são aflitivas. Lisas. Não guardam nada. Que saco Henry Fonda moço, John Wayne moço, como a gente vê agora a toda hora na televisão, mostrando a sua fugidia juventude. Eu me amo, agora. (Absolutamente frio.) E eu te amo agora, mais do que naquele momento em que, vendo você partir, descobri isso.

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