Entrevista:O Estado inteligente

sexta-feira, dezembro 29, 2006

A cultura do privilégio


Artigo - Rodrigo S. Muzzi
O Estado de S. Paulo
29/12/2006

O Brasil sempre institucionalizou como direitos os privilégios dos grupos dominantes. E a ideologia de plantão sempre serviu como justificativa.

Quem controla o Estado, no Brasil da Constituição de 1988, são grupos de poder que não coincidem exatamente com “classes sociais”.

Ler Marx no século 21 pode ajudar-nos a identificar os que hoje acumulam privilégios e em detrimento de quem. A fotografia é mutante, formando caleidoscópios de grupos de pressão que se alternam no controle dos mecanismos de Estado, e que invariavelmente travestem em “direitos adquiridos”, em “conquistas setoriais”, sob o manto do “social” ou do “nacional”, os privilégios que servem melhor aos seus interesses.

Privilégios exercidos contra as contas públicas, impondo assim a todos os brasileiros, de forma indireta e aleatória, o seu custo.

São esses grupos de interesses que efetivamente determinam o caos tributário e fiscal que causa o desapossamento dos excluídos no Brasil.

Se os códigos civis foram a matriz do direito ilimitado da “classe proprietária” do século 19, hoje, no Brasil, a matriz que legitima a atuação dos grupos que loteiam as contas públicas é a Constituição de 1988.

A questão que formulo é simples, e de difícil contestação teórica: “Todo privilégio atribuído a um segmento da sociedade, seja grupo, classe, setor produtivo, o será sempre em detrimento da sociedade como um todo.”

Independentemente das justificativas morais, históricas, humanitárias ou de compaixão, a institucionalização de um determinado privilégio resultará sempre na subtração do bem comum, da coisa republicana.

Os despossuídos de hoje são os pequenos empresários que todos os dias fecham as suas portas por não conseguirem arcar com os custos que o Estado lhes impõe. São os milhares de brasileiros que perdem os seus empregos pela redução de vendas e lucros das empresas que os empregam. São os milhares de jovens que não conseguem emprego por falta de investimentos. São os doentes que dependem do SUS e do atendimento público de saúde. São os jovens que freqüentam escolas que não ensinam. São os pequenos empresários ou gerentes de empresas que vêem os seus bens penhorados para responder por débitos fiscais que não são seus. São os brasileiros que enfrentam filas intermináveis para atender às exigências do Estado ou ter acesso aos seus serviços insuficientes.

Os três níveis de governo no Brasil recolhem, de um PIB anual de cerca de R$ 1,8 trilhão, algo próximo de R$ 650 bilhões. São R$ 650 bilhões tomados de 190 milhões de brasileiros e, especialmente, dos mais pobres. Destes R$ 650 bilhões, o grosso é distribuído diretamente a talvez algo em torno de 10 milhões de indivíduos.

Antes de mostrar a cara destes 10 milhões de brasileiros privilegiados, vamos excluir desses R$ 650 bilhões aqueles valores que atendem a um critério de distributividade, aqueles que são desembolsados diretamente para uma base ampla de brasileiros: programas sociais e aposentadorias de baixo valor. Serão, então, R$ 80 bilhões, segundo estimativa recente. Retirem-se, ainda, os valores de investimento: 3% do PIB? Que tal R$ 10 bilhões? Sobra, assim, para o butim dos privilegiados a fantástica soma de R$ 560 bilhões. E, repita-se, tomada de 190 milhões de brasileiros e entregue a apenas 10 milhões de indivíduos. A história econômica não registra programa de concentração de renda mais eficaz.

Quem são esses 10 milhões de indivíduos que têm “direito” a estes R$ 560 bilhões? Quem são essas pessoas que recebem, diretamente do Estado, pagamentos ou vantagens a qualquer título e que somam essa quantia estratosférica?

Serão os talvez 200 mil acionistas de bancos e investidores institucionais privilegiados pelos juros excessivos pagos pelo Estado para manter a bicicleta rodando. Serão os cerca de 600 mil empresários que se beneficiam de subsídios diversos, empréstimos a fundo perdido, equalizações financeiras, incentivos e isenções fiscais. Serão os 7 milhões de funcionários públicos da ativa. Serão os cerca de 1,5 milhão de brasileiros que recebem aposentadorias superiores ao teto do INSS. Serão os quase 500 mil indivíduos que integram os diversos Legislativos, senadores, deputados, vereadores e seus assessores, detentores de cargos de confiança, etc.

Os saqueadores do erário, os lobistas com interesses econômicos ou políticos, os corruptos em todos os níveis e quadrantes da administração pública, do Judiciário e do Legislativo, estimados em mais de 1 milhão de pessoas, já estão incluídos em alguma das categorias acima. A oportunidade de saquear o erário só existe para quem a ele tem acesso.

Faço uma ressalva final: o raciocínio acima não desqualifica o trabalho-valor dos funcionários públicos. Especialmente porque a contrapartida do trabalho-valor não faz parte do argumento de concentração de renda e, mais em especial ainda, porque o efeito de “desapossamento” não atinge os funcionários públicos, que têm o seu emprego e o seu rendimento constitucionalmente assegurados, ao contrário dos pequenos empreendedores e dos trabalhadores do setor privado, cuja remuneração - lucro/retirada ou salários - compete, na composição do custo final de mercadorias e serviços, com os tributos que sustentam a casta dos privilegiados.

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