Entrevista:O Estado inteligente

domingo, julho 16, 2006

A Idade das Trevas Gaudêncio Torquato

ESTADO

A Sólon, o legislador grego, foi perguntado se as leis que outorgara aos atenienses eram as melhores. Respondeu: "Dei-lhes as melhores que eles podiam suportar." É o caso de indagar: e no Brasil? Os nossos legisladores dirão que as leis até são boas, mas difíceis de aplicar. Generaliza-se a sensação de que o País navega nas ondas da impunidade. Mensaleiros, sanguessugas e trânsfugas de todas as espécies, flagrados com a mão na massa, continuam leves e soltos, a confirmar a tese de que o Brasil é, por excelência, o território da desobediência explícita. Nada mais surpreende. O esculacho chegou a tal ponto que Marcos Camacho, o Marcola, líder do PCC, ordenou ao deputado Moroni Torgan parar de gritar durante depoimento na CPI do Tráfico de Armas. E deu ênfase ao fato de que, como ele, parlamentares também roubam, deixando no ar a dúvida: qual a diferença entre um bandido e outro?

Da assertiva direta do comandante do império da violência, que continua a promover ondas de terror em São Paulo, realizando dezenas de ataques às forças de segurança e a alvos civis, depois de matar agentes do Estado e até seus familiares, se extrai a dura conclusão de que o poder invisível, confortável com a barbárie que consome o País, não tem mais escrúpulos nem receio de mostrar a cara. Pior: coloca-se no mesmo nível do poder do Estado. Para lapidar a pedra bruta da imagem basta o PCC mobilizar os seus "exércitos nas ruas e forças de ocupação nos cárceres" em movimentos cívicos pela punição dos "criminosos do Parlamento". Não é de assustar se parcela significativa da população começar a aplaudir a bandidagem da quadra de baixo contra a turma que faz zoeira no andar de cima. Afinal de contas, a passarela da criminalidade nas ruas e o desfile de impunidade nas antecâmaras do poder assumem dimensões grandiosas e formas escandalosas.

Corruptos e facínoras, se condenados, ganham o mesmo status perante a lei. Não é de estranhar a anomia que toma conta do País. Vem de longe. Desde os idos da colônia e do Império, fomos afeitos ao regime de permissividade, apesar da rigidez dos códigos. Tomé de Souza, primeiro governador-geral, chegou botando banca. Os crimes proliferavam. Avocou a si a imposição da lei, tirando o poder das capitanias. Um índio que assassinara um colono foi amarrado na boca de um canhão. Ordenou o tiro para tupinambás e colonos entrarem nos eixos. Mas em 1553 uma borracha foi passada na criminalidade, com exceção dos crimes de heresia, sodomia, traição e moeda falsa. Depois chegaram as Ordenações do Reino (Afonsinas, Manuelinas e Filipinas), que vigoraram até 1830. De tão severas, a ponto de estabelecerem a pena de morte para a maioria das infrações, espantaram até Frederico, o Grande, da Prússia, que ao ler o Livro das Ordenações chegou a indagar: "Há ainda gente viva em Portugal?" Os castigos, porém, eram freqüentemente perdoados. A regra era impor uma dialética do terror e do perdão para fazer do rei um homem justiceiro e bondoso, como relata Luís Francisco Carvalho Filho num ensaio sobre a impunidade no Brasil nos tempos da colônia e do Império.

E assim, entre sustos e panos quentes, o Brasil semeia a cultura do faz-de-conta na aplicação das leis. Entramos no terceiro milênio com 3% da população terrestre, 9% dos homicídios cometidos no mundo, 300 mil presos encarcerados, que ocupam 200 mil vagas (defasagem de 100 mil) e 200 mil mandados de prisão a serem cumpridos (faltam vagas). O descalabro não pára aí: apenas 2% dos indiciados em inquéritos criminais chegam a cumprir sentença condenatória. De 2 mil roubos que ocorrem diariamente na Grande São Paulo, menos de 3% dos assaltantes são presos na ocasião do delito. E no Rio apenas 1% dos homicídios é esclarecido pela polícia. No painel se flagra a doença espiritual da Nação: a indiferença da população diante dos crimes mais atrozes.

Sob esse tecido costurado com os fios da ilegalidade nasce o poder invisível, cancro das democracias contemporâneas. No nosso meio, protegido pelo manto protetor da impunidade, sai do esconderijo e sobe à superfície. Os latinos diziam que a impunidade estimula a delinqüência (impunitas peccandi illecebra). O velho Tomé de Souza não poderia alegar ao rei o motivo para não punir os criminosos: "Não os mandei enforcar porque tenho necessidade de gente que não me custe dinheiro." Coitado, morreria de susto ao saber que o custo da violência no Brasil é, hoje, de cerca de R$ 300 milhões por dia, no cálculo do ex-secretário nacional de Segurança Pública coronel José Vicente. Fosse esse o único saldo negativo, o País poderia comemorar. Mas o custo emocional é impagável. Morremos um pouco a cada dia. É a esperança que se extingue, a fé que se enterra, o sonho que se esvai no espaço das amarguras cotidianas.

Todos os dias a lembrança dos mortos pela violência se torna mais opaca. A galeria de extermínio recebe a tintura sangrenta de Bagdá. O poder de polícia se estiola. O castelo de leis desmorona, reforçando a amargura que nem Montesquieu conseguiu disfarçar: "Quando vou a um país, não examino se há boas leis, mas se são executadas as que há, pois boas leis existem em toda parte." As autoridades confessam impotência para fazer valer o Estado de Direito. Outras procuram tirar proveito do terror. Na névoa da insegurança se descortina a Idade das Trevas. As vítimas de hoje e as de amanhã andam como dândis nas ruas. A ordem está dada: atacar "calças azuis" (agentes penitenciários ou carcereiros), "calças cinzas" (PMs), "preto e branco" (policiais civis) e "capas pretas" (juízes e promotores).

No ranking das balas ou do seqüestro, podem figurar uma criança de 6 anos, o empresário que chega em casa ou a moça que pega o carro no estacionamento. Eles sabem que, mais cedo ou mais tarde, podem ser tragados por mãos assassinas. A guitarra de Bob Dylan não consegue disfarçar a melancolia do canto: "Quantas mortes ainda são necessárias para que se saiba que já se matou demais?"

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