27/7/2006
Não há limites para a degradação do Legislativo federal, tantos os
escândalos individuais ou coletivos que expõem sua podridão. O que
não viria mais se suas entranhas fossem ainda mais expostas numa
investigação que não dependesse apenas de denúncias ocasionais? E há
os desmandos legais, ao amparo de leis redigidas em benefício próprio
ou de grupos: os altos salários de congressistas e funcionários (os
da Câmara ainda há pouco tiveram mais um injustificável aumento), as
muitas mordomias, o empreguismo, as cortes de assessores não-
concursados, a trabalhar, quando o fazem, para a próxima eleição de
seu padrinho (o que é um privilegiado financiamento público de
campanhas), e por aí afora. Tudo a um custo elevadíssimo para um povo
abusado por quem se diz agir em nome dele.
A estimativa do número de picaretas, uns 300, foi feita pelo
presidente Lula antes de chegar ao cargo e lidar com uma banda podre
que também surgiu em andares próximos do seu gabinete e nos porões do
seu governo. A julgar pelas votações na Câmara, de 200 a 300 votos
que absolveram a maioria dos mensaleiros ou impediram a sua cassação,
apesar dos muitos pareceres contrários da Comissão de Ética, as três
centenas se mantêm como boa estimativa.
Agora, já se fala de uma centena de envolvidos num novo escândalo, o
dos sanguessugas. Essa abrangência, entretanto, não surpreendeu o
presidente da CPI criada para tratar do assunto, deputado Antônio
Carlos Biscaia (PT-RJ). Em entrevista a este jornal (22/7),
questionado sobre a estimativa de Lula para o grau de picaretagem no
Legislativo federal, disse que lá "o número de pessoas envolvidas em
práticas ilícitas é muito alto" e que "deve estar próximo disso que o
Lula afirmou". E concluiu que nem um santo salvaria esse Congresso.
O cenário é o de mais uma CPI, essa dos Sanguessugas, e mais uma
rodada de pizzas, desta vez com muito molho de tomate, usado em cenas
de sangue no teatro e no cinema. E não sobraram nem lições de outras
comissões do gênero. Segundo o mesmo deputado, "mal começou a
campanha, percebe-se que continua existindo caixa 2".
Falando recentemente sobre a corrupção na área política, o presidente
Lula afirmou: "Não pensem que o erro de cada um é individual ou
partidário. O que acontece são os acúmulos de deformações que vêm da
estrutura política do nosso país." Não é assim. A desonestidade é
individual. E também partidária, como ficou claro no escândalo do
mensalão. Mudanças na estrutura política do País poderão fechar
espaços para a bandalheira, mas não todos. E tais mudanças não podem
ser cosméticas, como as defendidas por Lula na mesma ocasião:
reorganização da estrutura partidária, mudança do regimento interno
do Congresso e impedimento dos partidos-laranja. Isso no contexto da
reforma política que agora prega, mas pela qual nunca se empenhou no
seu mandato.
Na Câmara dos Deputados, o cerne da questão é o sistema eleitoral,
proporcional, em que os deputados são eleitos de forma distorcida,
com uns puxando outros, e os eleitores são abandonados após o pleito.
Sem prestar-lhes contas, os deputados fazem do mandato um instrumento
de negociação com o Executivo, onde o apoio em votações na Casa é
trocado por verbas, cargos e outras vantagens políticas. Nessa troca,
muitos parlamentares resvalam para o proveito pessoal, como os
sanguessugas: emendas parlamentares que beneficiaram municípios com
ambulâncias tiveram sua liberação autorizada em troca de apoio, com a
maioria dos denunciados integrando partidos da base aliada ao
governo. Lá na ponta da compra dos veículos, vieram também as mamatas.
As denúncias seguirão seu lento curso de apuração, com colegas
segurando solidariamente o processo, dessa e de outras formas,
inclusive nas votações de cassação, evitando a punição. A cassação
pelo voto também será difícil, pois as informações sobre as
irregularidades serão pouco disseminadas, e haverá a desculpa de que
não houve punição. Ademais, muitos têm eleitorado cativo e o alto
custo das campanhas inviabiliza adversários.
Fosse distrital o sistema eleitoral, o desempenho do deputado, como o
de um prefeito, seria permanentemente discutido no seu distrito. Os
poucos candidatos (um por partido ou coligação) disputariam a mesma
vaga, a um custo de campanha muito menor, pois que limitada ao âmbito
distrital. Mantido o atual número de deputados federais, não haveria
centenas de candidatos nas 27 unidades da Federação disputando
múltiplas vagas em todo o território de cada um deles, sem condições
de o eleitor escolher bem, com campanhas caríssimas e elevada
predominância do poder econômico.
Seriam 513 distritos, cada um disputado por, se tanto, meia dúzia de
candidatos relevantes. Como nas eleições majoritárias, cada um
marcaria o outro individualmente, estabelecendo-se o contraditório,
permitindo uma avaliação muito melhor e a negação de novos mandatos
aos envolvidos em irregularidades. O eleito ficaria vinculado aos
eleitores de seu distrito, que assim poderiam acompanhar o exercício
do mandato, cobrar desempenho e identificar de picaretas a
sanguessugas, com o processo dificultando muito a emergência deles.
Desiludido com o atual sistema, não vejo condições de ele ser
reformado pelos congressistas eleitos pelo atual, nem mesmo se
renovados majoritariamente nas próximas eleições.
Probabilisticamente, um sistema que elege 300 picaretas deve
continuar a eleger um número próximo desse. Assim, novamente anularei
meu voto para deputado, na esperança de que essa atitude cresça a
ponto de retirar claramente do Congresso uma legitimidade que hoje só
existe formalmente.