Entrevista:O Estado inteligente

domingo, julho 16, 2006

ENTREVISTA Estado-'Nossa democracia é muito pouco democrática' :CELIO BORJA -



Partidos são cartórios, o eleitor não faz sua própria escolha e os problemas reais do País não são debatidos, diz ex-ministro

Gabriel Manzano Filho

Os 126 milhões de brasileiros que vão às urnas no dia 1º de outubro escolherão, entre 18.306 candidatos, representantes que, de modo geral, vão representá-los muito pouco, praticamente nada. Num cenário em que a própria idéia da democracia representativa está em crise - e não apenas no Brasil - pode-se prever que, de modo geral, serão eleitos políticos que não querem, não sabem ou não podem atender às necessidades e esperanças dos brasileiros.

A democracia está perdendo, aos olhos do cidadão, a batalha da imagem. As desigualdades sociais persistem, o mundo político virou um clubinho fechado. Em reação, cada vez mais a sociedade se socorre via ONGs e grupos assemelhados, que na outra ponta encontram, às vezes, lideranças ansiosas por esse contato direto, por fora das instituições.

Um craque do direito público, o jurista e ex-ministro da Justiça Célio Borja, 78 anos, veterano estudioso do assunto, não acredita em meias medidas. Se os partidos perdem seu papel, ele questiona: "Será que a democracia é tributária dos partidos? Não é possível que haja outras formas de participação sem eles?" Se o excesso de regras engessou a rotina política, ele radicaliza: "Só vejo uma saída: voltar à absoluta liberdade de organização política."

Democratizar a democracia, defendê-la dos perigos que a cercam - eis o tema a que se dedica o ex-ministro - e, além dele, muitos juristas e cientistas políticos. Na série que inicia hoje, o Estado trará, aos domingos, as mais significativas idéias de alguns desses pensadores sobre o tema.

Os eleitores vão às urnas, em outubro, eleger representantes que, em sua imensa maioria, não os representarão. A democracia está em crise?

Estão ocorrendo transformações profundas no modo de operar do regime democrático. Uma delas é a separação, cada dia mais nítida, entre governo e administração. O governo, constituído por políticos eleitos; a administração, por funcionários de carreira estáveis. O importante é que a maior parte dos benefícios, para os cidadãos, tem vindo muito mais de uma boa administração do que de projetos ou estratégias de governo.

Mas os candidatos propõem escolhas e mudanças.

Que propostas vemos? Alguém está propondo mudar o sistema federativo, que está cada vez mais centralizado? Ou dar garantias de qualidade e independência aos servidores? Eliminar as indicações políticas? Impedir a criação de impostos? Ou rediscutir essa nova realidade que é o Supremo transformado em juiz da lei, com um poder tão grande, a ponto de declarar inconstitucionais as leis que o Parlamento tem poderes para criar ou alterar? Assistimos a uma campanha sem propostas. Limitamo-nos a escolher entre bandido e mocinho.

O senhor falou em várias transformações. Quais as outras?

Outra, fundamental, é esta nova realidade da democracia participativa. A participação pelo voto está cedendo lugar ao exercício direto da democracia. Não com plebiscitos ou referendos, mas através de ONGs, lobbies e outros recursos. Eles nascem na sociedade, mas não em nome dela. Seu projeto não é conduzir, mas provocar a administração. Nem sempre está claro quem ou o que representam. Há casos como o do MST, que é puro banditismo político.

Os problemas da democracia vêm de longe. Estudiosos, como Norberto Bobbio, apontam a persistência das oligarquias, o fracasso em controlar o poder financeiro, a corrupção. O sr. acha que as instituições democráticas perdem força?

Acho. Um dos pontos relevantes é a questão dos partidos. Num primeiro momento, o partido era um órgão de representação do cidadão. Depois, tornou-se órgão do Estado, reduzido a uma repartição pública.

Por que isso aconteceu?

Historicamente, a grande responsável foi a esquerda, que imaginou uma representação que não pertencia a nenhum indivíduo, mas falava em nome do povo, em geral. Assim, já não se pode dizer que o voto é um direito individual. Sumiu do mapa a idéia original de um Parlamento que representava pessoas - que no início eram convocadas por um monarca, e depois indicadas pelos eleitores. As democracias mantiveram as formas jurídicas, mas se manifestam por partidos que são burocracias. O partido é um cartório, que se expressa, sobretudo, no voto em lista. Assim o voto nas eleições não é mais individual. Quem concorre é o partido, que não representa mais os eleitores.

Por isso a representatividade perdeu força?

Sim, e a democracia representativa, como idéia, se degradou. Ninguém se sente representado. Se eu sou um comunista, posso ser um militante, um obreiro. Mas posso também ser um obreiro da Igreja Universal, de uma obra católica ou islâmica. Não sou mais titular de um direito de representação, eu estou a serviço de um grupo. Por isso muita gente com vocação política prefere entrar numa ONG ou num movimento social. Acrescente-se a isso o que vimos ocorrer no Brasil: muitos partidos viraram quadrilhas. Chegaram a tal ponto de desvirtuamento que não podem continuar nem como associações civis.

Quais as saídas para esse dilema?

Eu não saberia dizer. Mas vejo que a percepção do eleitor é esta: a representação política é cada vez menos relevante para lhe garantir os benefícios do Estado. Pois o que interessa ao cidadão, cada vez mais, é o que ele pode receber do Estado. Aquela idéia um tanto mítica do Estado como símbolo de uma nação, desapareceu. Essa idéia de pertencer a uma nação se expressa, quando muito, durante a Copa do Mundo.

Se os partidos perdem seu papel, para que tipo de democracia estamos caminhando?

Eu sempre me perguntei isso. Será que a democracia é tributária dos partidos? Não é possível que haja outras formas de participação sem eles?

E qual a resposta para tudo isso?

Não a tenho. Só posso constatar que o partido se transformou em um clube, onde se paga uma mensalidade, mas participar mesmo, deliberar, é para uns poucos. Só vejo uma saída, a de voltarmos à absoluta liberdade de organização política. Acabar com qualquer forma de regulamentação dos partidos. Não regular nada, nem agora nem depois. Acabar com a dependência, como os fundos partidários. Tudo o que está aí foi construído a partir da idéia de que a liberdade não é propriamente a virtude da democracia - privilegiou-se em alguns lugares a fraternidade, em outros, a igualdade. E nunca a liberdade. E, no entanto, ela é a alma da democracia. Temos de refazer a experiência da liberdade.

O que isso significa na prática? Por exemplo, uma nova Constituição?

A Constituição que temos é regulamentar. É antidemocrática, na medida em que pretende pôr uma camisa de força na sociedade. Não diria que ela é autoritária, mas que é enxerida. Entra em tudo. Mete-se com a pensão alimentícia, que é coisa para o direito comum. Não há limitações, por exemplo, ao poder do Estado de estabelecer tributos. Ora, uma constituição deve ser feita de princípios, que são universais e para durar muito.

Uma boa reforma política não seria um caminho para algo melhor?

Todas as propostas de reforma política que tenho visto são pontuais. Umas ficam na fidelidade partidária. Outras, no número de partidos ou no financiamento de eleições. São ligadas a políticos falando em causa própria, determinando o numero de deputados etc. Isso não leva a lugar nenhum.

Nem para corrigir abusos?

O efeito disso tudo é zero. Pois o que está roendo a idéia democrática junto ao povo, é exatamente o fato de que a nossa democracia é muito pouco democrática. E o povo não tem espaço nem chance. Lembro aqui a concepção de democracia - que adotei como minha - do francês Henri Bergson. Ele diz que a democracia é de essência evangélica. Não é feita para o rico ou poderoso, é um serviço que se presta à comunidade. A ética democrática é a ética do bem comum. E essas coisas estão longe de ser atendidas. Em vez disso temos uma organização funcionando em favor de grupos. Falta é uma alma, uma ética do Estado a serviço de cada um de nós.

Quem é esse "nós"? Quem é esse brasileiro sem-Estado, ou sem-representação?

Posso dizer que, num certo sentido, somos hoje melhores do que fomos. Essa história de que somos imorais, mais corruptos do que no passado, não é verdade. O brasileiro é hoje mais educado, mais alfabetizado. Imagine que, no Rio de Janeiro antigo, todo o cálculo de imposto predial era feito por um lançador. Ele visitava um lugar e dizia: "Isto vale tanto, o sr. vai pagar "x" de imposto". E 90% deles se vendiam. O funcionalismo era uma vergonha, todinho de livre nomeação dos vereadores. Hoje temos processos melhores, não se aceita mais o nepotismo, os concursos públicos em geral funcionam.

Mas falta muita coisa, não?

Sim. A sociedade tem que ser acordada para a causa da liberdade, para que indivíduos voltem a se manifestar. Mas sou otimista. Acho que as pessoas amadurecem com as desilusões. Ao desistir de partidos e procurar ONGs, o cidadão está dizendo que não abre mão de participar da vida pública. A crise vai gerar um povo menos crédulo e mais ansioso por instituições que lhe permitam participar da vida pública.

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