Entrevista:O Estado inteligente

domingo, julho 16, 2006

Provérbios Celso Lafer Estado

     

O que ensinam os provérbios? Esta é pergunta que me acompanha há muito tempo. Ela me foi posta, pela primeira vez, por José Pérez, de quem fui aluno na passagem do colegial para a vida universitária. Era ele um erudito de boa cepa, tradutor de Spinoza, estudioso do Quixote e admirador dos clássicos, que editou e prefaciou, na década de 1930 e início da de 1940. Em 1961, José Pérez concebeu uma série de pequenos volumes de uma coleção com o título geral O Mundo e a Vida em Provérbios, dos quais foram publicados Provérbios sobre Provérbios, Provérbios Brasileiros e, o mais apimentado, A Coprolalia em Provérbios.

Pérez era um homem de esquerda e um apreciador da presença do povo nos ensinamentos contidos nos provérbios. Realçava o uso que Lenin fazia dos provérbios e sublinhava que Jesus não os dispensou na sua pregação, abonando a afirmação com o padre Vieira, que os considerava Evangelhos Humanos. Era um amazonense de família que provinha de judeus da Espanha e Portugal, em cujo meio era corrente a circulação de provérbios. Evocava um de proveniência ladina é ladina mesmo, não latina, Anabela, favor apagar, “en tus apuros y afanes, toma consejo de los refranes”, para realçar a sua dimensão sapiencial, que remonta à tradição bíblica. Embasava o valor do conhecimento contido nos provérbios recorrendo a Cervantes: “Não há refrão que não seja verdadeiro porque todos são sentenças extraídas da própria experiência, mãe de todas as ciências” (Quixote, I, 21). Advertia, no entanto, que a aplicação dos provérbios não pode ser indiscriminada. Depende do contexto concreto. Lembrava, assim, um dos conselhos do Quixote a Sancho Pança: “Não hás de misturar nas tuas falas, como costumas, uma multidão de refrões pois posto que os refrões são sentenças breves, muitas vezes os trazes tanto pelos cabelos que mais parecem disparates do que sentenças” (Quixote, II, 43).

A imbricação língua e cultura aparece com muita clareza nos provérbios. Esta foi uma faceta cultivada pela visão do mundo do romantismo que detectou a sabedoria dos povos na especificidade dos temas e da linguagem dos provérbios nacionais (“cada terra com seu uso, cada roca com seu fuso”).

Como ocorre nas metáforas futebolísticas e nas legendas dos pára-choques dos caminhões, a relação analógica é própria da construção do provérbio. Esta relação, quando bem-sucedida, é reveladora da função poética da linguagem. O bom provérbio tem a vivacidade de uma condensação temática, útil na eficiência de argumentos. “Grande gabador, pequeno fazedor” foi um provérbio de que me vali para sintetizar minha crítica à política externa lulista. “Saber muitas línguas é ser muitas vezes homem” condensou argumentação em prol do conhecimento das línguas, embasando defesa da manutenção da prova eliminatória de inglês no vestibular do Instituto Rio Branco. Os provérbios também instigam o comparativismo cultural e a busca, que o conhecimento de línguas permite, de um fundo comum de experiências. Este, ao transcender a indumentária específica do espírito dos povos, enseja o diálogo transnacional, que lida com o desafio político da Torre de Babel.

O provérbio tem, no entanto, uma face enigmática que a familiaridade do seu uso freqüentemente oculta. A primeira é a existência de provérbios contraditórios: “Quem espera, desespera”/“Quem espera sempre alcança.” É por isso que personagem do conto As Bodas de Luís Duarte, de Machado de Assis, afirma que os provérbios mentem. A segunda provém do que Gilberto de Mello Kujawski chama as artimanhas do óbvio, ou seja, o imobilismo derivado da rigidez das experiências do passado, enunciadas nos provérbios. Este imobilismo é um elemento constitutivo da fatura do romance I Malavoglia, de Verga, estudado por Antonio Candido no ensaio O Mundo-Provérbio.

A Bíblia é um dos códigos estruturadores da cultura ocidental. A ela remonta a respeitabilidade da perspectiva da sabedoria, presente no livro de Provérbios. Esta perspectiva é muito distinta da do Pentateuco, dos Livros Históricos e dos Profetas, pois não descortina a visão sistemática e organizadora das grandes narrativas. Ocupa-se do ser humano na sua complexidade, contida e guiada pelos múltiplos ensinamentos dos provérbios. Estes cultivam uma idéia de ordem baseada na justiça (“balança falsa é abominação para Iahweh/mas o peso justo tem o seu favor”, Provérbios, 11, 1). Tem a autoridade de sua atribuição a Salomão, paradigma do rei sábio, capaz de entendimento e julgamento.

Na perspectiva da sabedoria, o mundo é revelado e sustentado pelo uso apropriado da palavra e da linguagem (“morte e vida estão em poder da língua/aqueles que a escolhem comerão do seu fruto”, Provérbios, 18,21). É interessante, neste sentido, notar que a própria Bíblia, por meio da palavra, enfrenta nos escritos sapienciais a dimensão enigmática dos provérbios acima mencionada. O Livro de Jó articula a dúvida radical em relação à tradição sapiencial e o Eclesiastes, ao mesmo tempo, pressupõe e contesta a sabedoria convencional representada pelos Provérbios. É nesta dialética de complementaridade do Eclesiastes que reside o ensinamento dos provérbios.

Os provérbios estão lastreados na experiência e no senso comum. Este - como observa Hannah Arendt, recorrendo a Santo Tomás - é uma espécie de sexto sentido. Unifica os demais e dá ao experienciado a possibilidade de ser comunicado e condensado, no provérbio, por meio da linguagem, que nos liga à intersubjetividade do mundo da vida. Neste sentido, como diz Gilberto de Mello Kujawski, o senso comum é uma espécie de fio terra que contém o intransitivo do subjetivismo e nos conecta com a realidade da nossa circunstância. A circunstância é o contexto que abre o espaço para o repertório acumulado da sabedoria dos provérbios. No uso e aplicação deste repertório vale o recado de Guimarães Rosa pela boca do compadre Quelemém: “A colheita é comum, mas o capinar é sozinho.”

Celso Lafer, professor titular da Faculdade de Direito da USP, foi ministro das Relações Exteriores no governo FHC

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