A economista explica por que muitos
países ricos em recursos minerais se
afundam na corrupção e não conseguem
criar instituições democráticas sólidas
Chrystiane Silva
"Muitos países com recursos abundantes não viram vantagem em investir em educação, produção de conhecimento ou na construção de instituições fortes"
O despertar industrial dos Estados Unidos é um exemplo de como recursos minerais, como os da América do Norte no século XIX, podem ter um papel positivo na criação de nações fortes. Mas a abundância de riquezas naturais com muita freqüência alimenta governos ditatoriais e corruptos. Eliana Cardoso, uma das mais brilhantes economistas brasileiras, diz que só os países erguidos sobre a valorização do conhecimento, da liberdade individual e do respeito aos contratos conseguiram vencer o estágio extrativista e firmar-se como democracias modernas. Ph.D. em economia pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) e ex-funcionária do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial, Eliana Cardoso é professora visitante da FGV-São Paulo.
Veja – Entre 1960 e 1990, os países com escassos recursos naturais cresceram duas ou três vezes mais depressa do que aqueles que nadam em petróleo ou em outras riquezas minerais. O que explica isso?
Eliana – As variáveis são muitas. Mas o importante é que os países sem recursos naturais tiveram de fortalecer e aprimorar suas instituições como única saída para vencer as dificuldades. Por outro lado, os países com recursos abundantes acomodaram-se, satisfeitos com o que a natureza lhes deu, e não viram vantagem em investir em educação, produção de conhecimento ou na construção de instituições fortes. Como resultado, seus governos se tornaram vítimas da ganância, da cobiça e da corrupção. A tendência de a abundância de riquezas naturais enfraquecer as instituições e solapar o desenvolvimento sustentado das nações é tão presente na história recente do mundo que é quase uma maldição.
Veja – Não é uma expressão muito forte?
Eliana – Não. Os países cuja economia se assenta principalmente sobre o comércio de produtos naturais são levados quase automaticamente a cometer uma série de erros e desmazelos que impedem a modernização da sociedade. Em geral, suas lideranças se enchem de dinheiro fácil e seu Tesouro Nacional também, de modo que a primeira conseqüência é a destruição do sistema tributário. Os países simplesmente deixam de cobrar impostos. Isso cria um perigoso círculo vicioso. Como a população não paga tributos, ela não tem nenhuma razão para vigiar como o dinheiro público está sendo gasto. O resultado negativo mais imediato dessa situação é que os governos passam a não ter limites de gastos e, claro, vão se endividar muito acima do que o fariam em outro cenário. O México foi vítima dessa maldição por décadas. O governo mexicano deixou de cobrar impostos porque tinha na riqueza petrolífera uma fonte aparentemente inesgotável de recursos. A carga tributária no México não chegava a 10% do produto interno bruto (PIB). Só recentemente o México constatou a armadilha em que estava metido e começou a escapar dessa maldição.
Veja – Como ela se manifestou em outros países?
Eliana – No caso dos países do Oriente Médio, os recursos abundantes advindos do petróleo ajudaram a solidificar ditaduras e a solapar quaisquer tentativas de aprimoramento democrático. Na vizinha Venezuela, notoriamente rica em petróleo, as instituições ficaram ainda mais fracas. O atual presidente, Hugo Chávez, tem usado os recursos do petróleo não apenas para fazer o que quer dentro do próprio país, mas também para intervir na política dos países vizinhos. Os casos mais dramáticos, no entanto, acham-se entre os países africanos. Na África, a generosidade mineral da natureza tem sido usada não só para afastar qualquer esperança de democracia, mas igualmente para financiar e eternizar guerras civis que matam milhões.
Veja – É relativamente fácil entender como as riquezas minerais produzem instabilidade política, mas é quase um paradoxo admitir que elas contribuam para o atraso econômico, não?
Eliana – Mas elas contribuem muito, e de várias maneiras. A primeira é clara. Os preços dos recursos naturais flutuam muito ao sabor das mais imprevisíveis variáveis. Como conseqüência disso, a economia dos países produtores se torna refém da montanha-russa das cotações. Essa situação gera incerteza permanente e é um fator óbvio de inibição de investimentos. A segunda maneira diz respeito à dificuldade de estabelecer uma política cambial minimamente racional. Nos momentos em que os preços do recurso mineral predominante no país disparam, o Tesouro recebe uma enxurrada de moeda estrangeira. Com isso, a moeda local se torna supervalorizada. A conseqüência é conhecida. Os demais setores da economia passam a ter uma dificuldade muito maior de exportar seus produtos com lucro. O ciclo, então, se fecha. Mais e mais o país passa a depender do seu recurso ou recursos minerais, enquanto os demais setores se estiolam. O resultado final é maior dependência e menor crescimento econômico.
Veja – Há algum remédio contra esse efeito adverso?
Eliana – Uma alternativa seria criar um fundo externo de estabilização para neutralizar a valorização do câmbio e a volatilidade dos preços. Quando o preço dos recursos naturais sobe, o fundo acumula recursos, mas eles não afetam o câmbio porque o dinheiro não é gasto. Quando o preço cai, os recursos são usados para contrabalançar as perdas. Mas isso só funciona em países onde há instituições de qualidade, como na Noruega, onde existe um fundo de petróleo, ou no Chile, que também tem seu fundo estabilizador para as exportações de cobre. Em nações onde as instituições são fracas, nem esse fundo adianta. O que ocorre é que as exportações produzem uma montanha de dinheiro, mas ele vai parar nas contas de algum político corrupto. A Venezuela já teve um fundo de petróleo. O que ocorreu? O dinheiro foi espoliado por políticos corruptos.
Veja – Em havendo uma sociedade sadia, com lideranças honestas, é uma vantagem ter um subsolo rico, não?
Eliana – A riqueza natural não garante, mas pode, claro, ter um papel positivo na vida das nações. O bom senso nos leva a acreditar nisso, e é o que de fato ocorre em muitos casos. A magnífica dotação de recursos naturais da América do Norte foi decisiva nos primórdios do desenvolvimento dos Estados Unidos. Mais tarde, o tamanho do mercado e a inovação tecnológica tomaram a dianteira. À medida que a indústria amadurecia, a educação universitária tornou-se essencial para garantir maior criatividade nos processos gerenciais. Em outras palavras, a sociedade americana valeu-se de mecanismos que deram à economia a flexibilidade necessária para evoluir de um estágio ao seguinte, de modo a escapar da maldição da dependência das fontes primárias.
Veja – A educação é um desses mecanismos?
Eliana – Sim, mas é preciso saber de que educação estamos falando. Um estudo do professor Philippe Aghion, da Universidade Harvard, examina essa questão e destaca diferentes formas de educação ou, mais precisamente, de investimento em capital humano. O investimento em educação superior resulta em um impacto positivo maior sobre a inovação. Investimento em educação de base favorece modelos em que a cópia predomina ao lado do uso intensivo de tecnologias importadas das economias mais avançadas. Aghion mostra que a ênfase na educação superior contribui de forma significativa para o crescimento nos países industrializados. Mostra também que o investimento em educação básica é fator primordial de indução do crescimento nos países em desenvolvimento.
Veja – China e Índia, cujas economias estão encantando o mundo, são produtos de que tipo de investimento educacional?
Eliana – São dois casos diferentes. Os progressos da China na educação de base são muito superiores aos da Índia. Reflexo disso é que, tomando como base dados de seis anos atrás, 84% da população chinesa adulta sabia ler e escrever, mas entre os adultos indianos a proporção era apenas de 57%. Entre os chineses de 15 a 24 anos, 98% sabiam ler e escrever, em comparação com apenas 73% dos jovens indianos da mesma faixa etária. A China prestava atenção na educação básica na área rural e só começou a investir na expansão da educação superior na última década. Enquanto isso, a Índia, como o Brasil, colocava mais recursos na educação universitária. Se o argumento de Aghion está correto, não há surpresa no fato de a China ter crescido a 10% durante os últimos 25 anos, enquanto o Brasil e a Índia mal se moviam. A Índia só começou a crescer a taxas altas há poucos anos, e ainda não sabemos se seu crescimento é sustentável.
Veja – Grosso modo, pode-se dizer que tanto o Brasil quanto os Estados Unidos nasceram em berço esplêndido no que diz respeito a recursos naturais. O que explica o desenvolvimento tão díspar dos dois países?
Eliana – As circunstâncias históricas. Um estudo feito pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts, o MIT, mostrou que as colônias européias que cuidaram de implantar instituições capazes de garantir a defesa da propriedade privada tiraram muito mais proveito da Revolução Industrial do que as que se fiaram mais fortemente na exploração de recursos naturais. Isso explica em boa parte a enorme diferença de renda dos Estados Unidos e das demais colônias européias nas Américas. Em 1900, a renda per capita dos habitantes dos Estados Unidos já era dez vezes maior do que a dos brasileiros.
Veja – Na opinião da senhora, o Brasil não soube navegar tão bem de um estágio ao seguinte na sua evolução econômica?
Eliana – O Brasil de agora não pode ser igualado às nações que sofrem da maldição das riquezas naturais a que nos referimos antes. A economia brasileira não é dependente das exportações de um único produto. Mas o Brasil não soube ou não pôde criar instituições capazes de obrigar os governos a gastar melhor o dinheiro que obtém de uma espécie diferente de recurso, entre nós considerado natural, que são os impostos pagos pelos cidadãos. O Brasil tem tido governos que rasgam dinheiro. Quando um governo emprega mal o dinheiro obtido com recursos naturais ou com a carga tributária, ele deixa de cumprir o papel que lhe cabe e distorce o funcionamento da economia. O efeito desastroso para o crescimento é o mesmo. O Brasil, é inegável, tem instituições, como o Banco Central, que são eficientes e têm cumprido seu papel. As universidades também têm contribuído com a sociedade formando técnicos competentes. Mas essas são condições insuficientes para mudar o país e levá-lo a um patamar superior de crescimento econômico.
Veja – O que falta?
Eliana – Falta previsibilidade mínima no dia-a-dia das pessoas e das empresas. Claramente o custo das transações econômicas no Brasil é afetado pela prevalência de certo cinismo e pela tolerância com os crimes dos governantes. Sem que nos déssemos conta disso, instalou-se no Brasil um clima propício ao desenvolvimento do banditismo e da criminalidade. A impunidade resulta, em última instância, em uma sociedade na qual as pessoas não confiam umas nas outras. Ora, isso é exatamente o que aumenta o custo das transações, tornando a economia mais letárgica, improdutiva, incapaz de atingir o ritmo ideal de crescimento.
Veja – A senhora elogiou o Banco Central. Isso soa meio sacrílego em um país onde o esporte nacional é colocar a culpa de tudo nos juros altos...
Eliana – O responsável pelos juros altos no Brasil não é o Banco Central, mas a política fiscal. Se o governo gasta muito, o Banco Central não tem alternativa senão aumentar os juros para cumprir bem sua principal missão, que é controlar a inflação. O governo gasta muito mais do que arrecada e isso gera duas grandes distorções na economia. A primeira é que os juros altos necessários para combater a inflação inibem os investimentos que o setor privado precisa fazer para aumentar sua capacidade de produção. A segunda é o aumento abusivo dos impostos. Se nós, brasileiros, não conseguirmos obrigar os governos a colocar um teto no volume de crescimento dos gastos públicos, estaremos condenados a taxas medíocres de crescimento.
Veja – O que se vê, no entanto, no mundo oficial brasileiro é o oposto do que a senhora diz: há uma idolatria de Hugo Chávez e seu petróleo. Ele até foi aceito no Mercosul. O que a senhora acha disso?
Eliana – Mesmo antes de Lula assumir o governo eu já dizia que o Mercosul era um zumbi, uma alma penada, que tinha morrido e estava zanzando por aí. A política de acordos com a Argentina já vinha sendo altamente prejudicial ao país. Mesmo antes de Hugo Chávez, o Mercosul já não servia aos interesses brasileiros. Agora, com a entrada de Chávez no clube, o Mercosul corre o risco de renascer como um palco para a propaganda anticapitalista de um demagogo populista e atrasado. O que interessa ao Brasil é a abertura comercial. Só o comércio internacional oferece aos produtores a possibilidade dos ganhos de escala. O progresso, principalmente o tecnológico, viaja de um país para outro nas asas do comércio. O Mercosul é um empecilho para a abertura comercial brasileira para o mundo. Portanto, é um mal para os brasileiros.
Veja – Há muito tempo não havia um cenário externo tão favorável como o dos últimos três anos. O Brasil fez bom uso dessa janela de oportunidades?
Eliana – Não há dúvida de que houve um sopro externo extremamente favorável. Obviamente, é muito mais fácil governar um país quando o mundo está vivendo sem solavancos nem crises. Mas, justiça seja feita, o governo Lula soube aproveitar muitas das facilidades oferecidas pelo ambiente externo. A redução da parcela da dívida atrelada ao dólar foi um grande passo. A ênfase nas exportações também foi louvável. Com exceção do crescimento abusivo dos gastos públicos, a verdade é que a economia sob Lula não foi assim tão mal gerida. Houve vários acertos.
Eliana – O convívio com a corrupção e o acobertamento dos corruptos. Esses são males cujo prejuízo para o país ainda vão durar muitos anos. O que eu condeno no atual governo é o desprezo pela retidão e pelos valores imprescindíveis na criação de uma sociedade capaz de crescer de forma estável, constante e sadia. Nesse contexto, infelizmente, nos igualamos nos últimos anos às nações amaldiçoadas pela dependência dos recursos naturais de que falei anteriormente.