O governo Lula assinala também o fracasso dos nossos intérpretes políticos, de qualquer coloratura partidária. A dita "esquerda" que o defendia como porta-voz do socialismo democrático, da tal "reforma social" que é mais um dos clichês que ela repete sem ver necessidade de traduzir em termos práticos, agora ouve dele mesmo que nunca foi "de esquerda", a não ser - deduzimos - no discurso anticapitalista que ventriloquava dos professores da USP até quatro ou cinco anos atrás. A tal "direita" não sabe o que diz sobre seu governo além das velhas acusações de ser "bolchevique", "atrasado" ou "estatizante", o que não bate - salvo em alguns pontos - com sua política econômica, tão aplaudida pelo mercado financeiro que agora este até prefere Lula às alternativas.
Não se pode separar o atual momento político, a duas semanas do início da campanha eleitoral nas TVs, de uma série de noções que foram colando na opinião pública desde o primeiro governo FHC. Por exemplo, o de que ele seria "neoliberal"; como já notei aqui inúmeras vezes, FHC pode ter feito privatizações e proposto lei de responsabilidade fiscal, mas seguramente não minimizou o Estado, que ainda continua a sugar mais e mais - sim, como sanguessugas - a saúde produtiva da sociedade. Ao mesmo tempo, os petistas só sabem defender o governo Lula se for na base da comparação com o governo anterior, tanto que supõem que qualquer crítica a ele transforme imediatamente o crítico em "tucano". Pois quem parece mais "tucano" (em cima do muro) e "neoliberal" (monetarista) do que nunca é o próprio governo Lula. Até as comparações numéricas - como o crescimento médio de cada um, ambos ridiculamente inferiores a 3% -, verdadeiros concursos de tecnocratas, dominam as mensagens dos que se recusam a ver a "conversão" de seu partido.
Um exame de quatro problemas sérios do Brasil também revela que as semelhanças são muito mais fortes que as diferenças. O primeiro é justamente a carga tributária. O governo FHC aumentou de 27% para 34%; o governo Lula, em metade do tempo, já a está levando para 39%, defendendo inclusive a permanência da burrice da CPMF. É mais do que cobram EUA e Japão, os dois países mais ricos. Com a desvantagem substancial de que tal subida dos impostos não foi compensada por uma melhor prestação de serviços sociais. Outro ponto em comum é o descaso com a infra-estrutura. O governo FHC deixou acontecer o apagão; o governo Lula, que abandonou a idéia das agências de desenvolvimento, não tirou nenhum projeto do papel, afora a operação tapa-buraco e engana-trouxa para as rodovias. Terceira semelhança: o descaso com o ensino médio. Se FHC apostou nas estatísticas do "toda criança na escola", Lula investiu na imagem dos "carentes na universidade"; nenhum dos dois mexeu no conteúdo da educação nem combateu o gargalo maior da escolaridade brasileira que é o ensino médio. O quarto item, claro, é a corrupção. Que pode até ter sido mais visível no governo Lula, eleito para acabar com ela, mas não foi inventada por ele.
Se não tivessem lido tão mal o governo anterior, talvez pudessem ler melhor o atual. E assim nos poupado desse bate-rebate entre os dois candidatos. Não, Heloísa Helena não é a ruptura com esse bipartidarismo, mas antes um subproduto dele. Ela mistura o discurso anterior do PT - que apela à compaixão e à ética em face da "ciranda financeira internacional" - com um tom indignado que também atrai o voto "cacareco", de protesto sem programa. É da vertigem das semelhanças que ela sai pela tangente. Dificilmente, como os outros dois candidatos, irá de encontro ao cerne dos problemas, oculto como está por tantas palavras, palavras, palavras.
RODAPÉ (1)
Recebo da Confraria dos Bibliófilos mais uma linda edição artesanal, Mario Quintana - Cem Poemas, em comemoração ao seu centenário. Quintana não está entre meus, digamos, dez poetas brasileiros preferidos. Mas, apesar de certa facilidade sentimental que faz de seus versos os preferidos das folhinhas de calendário, ele tinha um toque parecido com o de Bandeira, uma ternura quase infantil com uma amargura meio existencialista. Sua fase inicial surpreende pelos rasgos metafísicos, mais tarde substituídos pela ironia graciosa de aforismos como: "Todos esses que aí estão/ Atravancando meu caminho,/ Eles passarão/ Eu passarinho!" Ou: "Venho do fundo das Eras,/ Quando o mundo mal nascia,/ Sou tão antigo e tão novo/ Como a luz de cada dia."
RODAPÉ (2)
Clássicos continuam a ser reeditados no Brasil, com novas traduções e belos projetos gráficos. A palavra "clássicos" faz muita gente pensar em livros lentos e longos. Mas leia Bom Pantagruel, de Rabelais (tradução Élide Valarini Oliver; Ateliê Editorial). Rabelais adora enumerações, palavrões, paródias; seu texto jamais entra na bitola; mistura citações e gêneros, se detém na importância da braguilha, tira sarro do casamento. E isso tudo em 1546.
Sem Rabelais não existiria Ferdydurke, de Witold Gombrowicz (tradução Tomasz Barcinski; Companhia das Letras), de 1937, lançado agora pela primeira vez no Brasil. É o Brás Cubas polonês, uma folia verbal, um elogio irônico à adolescência em contraponto à "maturidade" confundida como pompa e formalismo. De repente o livro pode assumir um tom de artigo de opinião em meio à narrativa e atacar de modo divertido os "artistas" que supõem ser uma classe à parte da humanidade. Se o século 20 é "o século da confusão dos séculos", Gombrowicz leva toda essa confusão para seu texto.
RODAPÉ (3)
Existe uma crença vulgar de que o crítico é um artista frustrado, alguém que por não conseguir escrever bons poemas saiu a demolir os dos outros. Nem sempre é assim. Às vezes o crítico pode falar melhor da arte do romance do que um romancista. Prova: compare A Voz do Escritor, de A. Alvarez (Civilização Brasileira), e Cartas a um Jovem Escritor, de Mario Vargas Llosa (Alegro) - e olhe que Llosa é um resenhista de qualidade. Alvarez investiga uma questão central - o que define a voz de um autor, seu estilo próprio, o ritmo que permanece depois que as palavras se foram? - e o faz em ensaios que discutem a relação entre poesia e música, o detalhe que faz a frase iluminar o tema, a conversão do "defeito" pessoal em trunfo estético. Llosa, porém, fica apenas em generalidades, como o poder de persuasão, o tempo psicológico e a guinada narrativa, entre outros chavões das escolas de redação criativa.
UMA LÁGRIMA
Para Gianfrancesco Guarnieri, morto aos 71 anos no sábado retrasado. Como dramaturgo, fez o marco Eles não Usam Black-Tie em 1956, aos 25 anos, uma peça que resiste mais pela força dos conflitos pessoais do que pela tese ideológica que embute. Como ator, também foi marcante em clássicos como Tartufo. A segunda metade de sua carreira não manteve o mesmo nível, mas por alguns papéis na TV e sobretudo no cinema - em Gaijin ou O Quatrilho - dava para perceber que grande ator subestimado ou subaproveitado era ele.
POR QUE NÃO ME UFANO (1)
Toda vez que crimes como o de Suzana Richthofen e Daniel Cravinhos estão em pauta, uma pequena multidão de psicólogos e psicanalistas surge para dar a suposta explicação única e final para o ocorrido. A mais comum é a mais inconsistente: Suzana é um produto de uma era individualista, consumista, narcisista, etc. - como se o indivíduo fosse produto do ambiente e como se esse tipo de crime fosse exclusivo dos tempos modernos. Mas isso não é nada perto do laudo divulgado sobre Champinha, o chefe do bando que barbarizou o casal Liana e Felipe. Ele teria um "leve retardo mental" e seria absolutamente "camaleônico" e "influenciável"; ou seja, em meio a pessoas pacíficas, se tornaria pacífico...
Champinha pode ser solto daqui a alguns meses porque, como menor, não respondeu por seu crime hediondo. Os juristas não ficam atrás dos psicólogos: acham que endurecer determinadas leis não é importante para a melhora da segurança pública - como se tudo fosse apenas uma questão educativa. Essa gente não chegou aos tempos realmente modernos. Nenhuma explicação é suficiente; nenhuma solução é isolada.
POR QUE NÃO ME UFANO (2)
Diz o site do PT: "O Partido dos Trabalhadores está orientando militantes, simpatizantes e todos os eleitores do presidente Luiz Inácio da Silva a utilizarem o potencial da Internet para dinamizar a campanha pela reeleição. (...) A idéia é ocupar o espaço virtual para defender os projetos da administração federal, debater o programa de governo do próximo mandato e combater a 'guerra suja' das acusações infundadas, caluniosas e criminosas que circulam com facilidade por este meio." Pois a militância entendeu da seguinte forma: entrem e xinguem qualquer pessoa na Internet que critique Lula e o PT, não importando se a crítica é baseada em fatos e argumentos.
Aforismos sem juízo
Raramente o futuro é um presente do passado.