A minha geração viveu graves turbulências políticas. Nunca a envergonhar o Brasil, como hoje. Dividimo-nos, mas não fomos cafajestes. O tenentismo combateu uma sociedade política injusta, o voto de cabresto, a apuração a ponta de lápis. Éramos um país sem cultura política, dominado pelos "coronéis", grão-senhores dos currais eleitorais numa depravação da democracia representativa. Artur Bernardes governou quatro anos apoiado no estado de sítio. Teve problemas com os jovens militares. Obrigou a domicílio forçado em Clevelândia do Norte, no Oiapoque, região dominada pela malária mortal, seus adversários civis mais respeitáveis, a começar por J. J. Seabra. Em 1924, iniciou-se a epopéia da grande marcha da coluna Miguel Costa-Luís Carlos Prestes. Terminou com o exílio na Bolívia, mas dela nascia a semente da libertação do opróbrio. Esgotada a submissão ao poder corrompido e corruptor, eclodiu a Revolução de 1930. Ainda muito longe do pregado na Aliança Liberal, terminou a imoralidade do voto de cabresto dando lugar ao voto secreto e à moralização da administração. Infelizmente, conhecemos a ditadura, que medrara irresistível na América hispânica, com seus ditadores generais fardados se revezando no poder com golpes de Estado sucessivos.
Tivemos, então, a gloriosa Revolução de 1932, sustentada só por São Paulo, abandonado com desonra pelos que lhe tinham assegurado o apoio. Sua derrota, porém, impôs a volta à democracia, ainda que efêmera, com a Constituição de 1934. Passamos a viver a influência desastrosa da ideologia. Em 1935, os comunistas, sob o comando de Prestes e obedientes às ordens do Komintern, tentaram fazer-nos satélites de Moscou. O autogolpe de 1937, de Getúlio Vargas, foi dado sob o pretexto de impedir o crescimento do comunismo. Enviamos uma divisão de Infantaria para ajudar a vencer pelas armas os ditadores mais cruéis que a Europa contemporânea conhecera. A conseqüência natural foi também derrubar do poder o ditador Getúlio Vargas, em 1945, e promulgar a Constituição de 1946. Tivemos o suicídio de um presidente, produto do ódio político, mas em toda a República não prosperou a corrupção como política de governo.
No mundo pós-2ª Guerra Mundial, o comunismo se expandira. Dominara a China, comandara a descolonização de parte da Ásia e de quase toda a África e chegara ao Caribe, em Cuba, usando a tática ensinada na guerra revolucionária. Sem apoio do povo, a luta armada comunista foi vencida no Brasil. Ressentidos, vencidos dizem que foram derrotados pela tortura, que aqui não era política de Estado, mas era das ditaduras comunistas que eles defendiam. A paixão ideológica ceifara vidas de ambos os lados. Pela primeira vez a farda, em 1964, se apoderou do poder político, num regime autoritário, mas não totalitário. Os cinco generais que nos presidiram foram incorruptíveis e modernizaram o País.
Escrevemos uma Constituição que em certas normas é das mais avançadas do mundo. Claudicamos ao acolher medidas provisórias num regime presidencialista. E a esquerda, de vários matizes, chegou ao governo, apoiada nas urnas pelos políticos que, antes, se associaram aos militares que a combateram. A despeito de inegáveis atos de retaliação, permanecem fiéis ao poder civil, preferindo confiar no julgamento da História, quando ela, livre das paixões deformadoras do caráter das pessoas, julgar em definitivo o período sombrio da contra-insurreição, o saldo trágico dos cadáveres dos revolucionários e dos que, ao iniciar a carreira castrense, no seu juramento se comprometeram a defender as instituições e a Pátria com o sacrifício da própria vida.
Mas que temos como resultado, após duas décadas do poder civil, síntese de todos os poderes? Um Executivo que, minoritário na Câmara dos Deputados (91do PT ante 422 das outras legendas), se tornou maioria corrompendo os vendilhões de votos, os mensaleiros. Um Executivo, que, usando as medidas provisórias, legisla mais que o Congresso. Um Executivo que trocou a preocupação social da administração por um modelo assistencialista que, em parte, estimula o desemprego e era chamado de esmola quando oposicionista quem hoje é presidente da República. Um Executivo, que se gaba de ter sido o melhor desde Tomé de Souza, em cuja gestão o PIB só cresceu um pouco mais que o do Haiti, em 2005. Um Executivo que se protege da corrupção dizendo que nada sabe e nada vê e se esquece de todas as promessas de campanha.
De outro lado, um Parlamento que, em boa parte, se vendeu a Delúbio Soares e Marcos Valério e, como se fosse pouco, no qual 105 dos parlamentares, agora, se igualam aos ladrões despudorados, recebendo, em dinheiro vivo, para fugir de provas, ou em conta corrente própria ou de assessores, a miserável propina derivada de emendas ao orçamento para compras superfaturadas de ambulâncias. Os Marcolas e Fernandinhos Beira-Mar, execráveis figuras do narcotráfico, são menos repugnantes que os que furtam o dinheiro público e entregam aos prefeitos (iguais a eles) ambulâncias desprovidas, muitas vezes, de acessórios indispensáveis para salvar a vida de pobres enfermos. O retrato moral do Parlamento (principalmente da Câmara, depois da desautorização do Conselho de Ética) é objeto do conceito que lhe faz o presidente da CPI dos chamados popularmente sanguessugas: "O Parlamento aceita com naturalidade os desvios de conduta de seus pares." Pior: "Os fatos colocam sob suspeita não só 10%, mas a integridade do Congresso." Nunca chegamos a um nível tão baixo e repugnante do Poder Legislativo, no qual há exceções que nos merecem admiração e não merecem tão asquerosas companhias.
Sob um bom governo, a corrupção é inevitável, mas sob um mau governo é imperdoável a conivência.
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