O GLOBO
O presidente Lula somou à sua versão de “eu não sabia de nada” o conto das andorinhas. O pior que pode acontecer nestas eleições é permitir a aceitação de versões toscas. O país está atravessando o pior momento da sua história em matéria de corrupção, pela extensão do problema, pela sofisticação dos esquemas, pela ousadia dos corruptos. Um momento assim só tem um final feliz se o país tirar dele uma boa lição e construir mecanismos de transparência e controle.
O Brasil parece estar passando pelo lodo para encontrar mais lodo e se acostumar com ele. As explicações ligeiras são uma tentativa de que o horror seja moído, comprimido e passe pela simplificação do processo eleitoral. São um desserviço à causa do esclarecimento, da correção dos absurdos e de sua prevenção.
O conto das andorinhas sustenta que tudo está aparecendo porque o governo federal “resolveu fiscalizar” — pela primeira vez na história desse país. Se até agora ele não havia divulgado, é “porque era preciso manter sigilo para pegar a ninhada”. Repetindo Merval Pereira, neste jornal, na sexta-feira: os maiores escândalos não vieram a público por ação do governo. O caso Waldomiro foi denúncia da revista “Época”, a fita do Marinho, dos Correios, foi publicada na “Veja”, o estouro do mensalão foi uma entrevista publicada na “Folha de S.Paulo”. A comissão de sindicância do PT recusou a oferta que Silvinho fez de depor. O GLOBO o ouviu e, da entrevista, saíram informações preciosas. O caso dos sanguessugas nasceu por atuação de um juiz federal e avança pela ação de parlamentares de partidos pequenos. O governo tentou impedir todas as CPIs e fez chicana para evitar esclarecimento devidos pelos seus ministros.
Os momentos extremos oferecem riscos e chances. O país tem corrido mais risco que aproveitado as chances. Pode-se usar a crise para avançar na construção de mecanismos de combate à corrupção, como fizeram vários países no passado recente, ou corre-se o risco de institucionalizar a malandragem.
O Brasil não é o primeiro, nem o último país a enfrentar uma onda de corrupção, mas é o que menos pune. O melancólico balanço dos punidos do mensalão confirmou a regra. O Congresso perdeu a chance de iniciar um novo tempo. O caso dos sanguessugas e a persistência de alguns poucos parlamentares é uma nova chance.
A eleição é também uma chance, mas o Brasil pode perdê-la pela ação do governo e das oposições. O candidato-presidente surfa a crise com explicações que deslizam sobre os fatos. O principal candidato de oposição até agora não apresentou uma proposta sobre como pretende evitar a corrupção em seu governo; como de resto, não tem idéias novas sobre coisa alguma. Fala diariamente nos noticiários de televisão — nos espaços divididos, por imposição da lei eleitoral, como fatias de torta entre candidatos, inclusive os fictícios — e até agora não conseguiu impressionar os telespectadores com proposta alguma. O que exatamente Alckmin pensa sobre qualquer coisa? A pergunta feita por Elio Gaspari há duas semanas permanece sem resposta. Heloísa Helena usa melhor o espaço e já divulgou algumas idéias, mas confirma a premissa de que, para cada problema complexo, existe uma solução simples e, em geral, ela está errada. O melhor exemplo disso é a solução para os juros cronicamente altos no Brasil: bastará um decreto presidencial no primeiro dia de governo e todas as contradições da economia brasileira, refletidas nas taxas de juros, desaparecerão.
A chaga da corrupção — devastadora, perigosa, humilhante — é tratada por truques marqueteiros. O presidente Lula improvisa sua frase esperta de ocasião, como a da ninhada de andorinhas; Alckmin faz supostas frases de efeito ou visita fórmulas emboloradas, como a da vassoura janista. Não há uma idéia consistente, baseada no conhecimento já acumulado em outros países sobre como enfrentar a onda de sujeira que parece invencível. Não há um único avanço técnico e institucionalmente consistente num tema que há muito tempo deixou de ser vencido com golpes de salvadores, improvisos ou espertezas políticas.
O conto da andorinha de Lula é tão raso quanto tudo o que ele tem dito sobre esse caso. Lula até agora não teve um minuto de comportamento presidencial diante do risco grave pelo que passa a nação. Quando o caso do mensalão estourou nas cercanias do gabinete presidencial, era o momento de ter uma atitude de estadista, enfrentar as dúvidas da sociedade postas através da imprensa, procurar soluções de olho no futuro do país, e não nas próximas eleições. As entrevistas das quais fugiu durante todo o governo ele dará agora por oportunismo eleitoral, mas preparou para elas artimanhas de escape.
As explicações dadas pelo presidente da República não conhecem um fio condutor. Ele já deu tantas versões que, juntas, formam um todo sem um traço de coerência. Ou ele nunca soube de nada, ou tudo está saindo porque nunca antes na história deste país o governo investigou tanto. Ou ele foi traído ou é tudo culpa da oposição que tem que lavar a boca antes de falar dele. Ou nunca houve mensalão ou houve motivos para demitir ministros e defenestrar a cúpula do PT. Ou o PT fez o que se faz sistematicamente no país ou tudo é uma conspiração das elites. Todas as explicações juntas formam um conjunto tão inverossímil quanto os contos das carochinhas. Ou das andorinhas.
Entrevista:O Estado inteligente
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