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O livro da americana Bárbara Tuchman, A Marcha da Insensatez, sobre episódios da história universal em que os donos do poder adotaram condutas contrárias a seus próprios interesses, a despeito da evidência dos equívocos, é um clássico.
Da abertura dos portões de Tróia ao cavalo ofertado pelos gregos que dizimariam a cidade, à derrota dos Estados Unidos na guerra do Vietnã, passando pela série de erros da Inglaterra até a perda da América e o surgimento do protestantismo provocado pelos desatinos dos papas da Renascença, a historiadora relata os paradoxos dos governantes que confrontaram a lógica, agrediram os fatos, abdicaram da racionalidade e terminaram vítimas das ações empreendidas por eles mesmos.
Como o livro trata da insensatez aplicada à arte de governar, os conceitos tratados ali não têm prazo de validade, continuam atualíssimos. Assim como permanece sem resposta a pergunta feita por Tuchman na introdução: “Por que os homens com poder de decisão política tão freqüentemente agem de forma contrária àquela apontada pela razão e sugerida pelos próprios interesses em jogo?”
Qualquer um dos episódios analisados por ela serve como referência à análise de fatos atuais. Todos eles guardam semelhanças e se prestam a comparações com ações e decisões erráticas no mundo de hoje. O Brasil não é exceção.
A releitura do capítulo sobre os papas da Renascença remete a inevitáveis conexões com a crise de conduta que assola o nosso ambiente político.
Durante 60 anos, entre 1470 e 1530, seis papas sucessivamente levaram ao extremo comportamentos tão venais, escandalizaram tanto os fiéis, ignoraram de tal forma protestos, advertências e “brados por reformas”, que conseguiram “espatifar a unidade da Igreja, perdendo metade de seu rebanho para a cisão protestante”, escreve a historiadora.
Tudo pela “prática da insensatez com contumácia e obstinação”. Algumas dessas ações insensatas: a substituição do pensamento e da doutrina por negociatas, subornos e conspiratas; resistência a reformas por medo de perda de autoridade e privilégios; alianças espúrias referidas na manutenção do poder; indiferença aos protestos; comercialização da religião, banalização do pecado e contaminação do baixo clero pelo mesmo tipo de comportamento dissoluto dos chefes da Igreja.
Tanto fizeram que transformaram o pontificado em objeto de zombaria. Assim ocorre hoje no que tange à imagem dos políticos; e as semelhanças não param por aí.
Relata a autora: “Isso tudo se constituía em fonte de imenso ressentimento, pois na concepção das pessoas os padres seriam, supostamente, homens de santidade agindo como intermediários entre Deus e as criaturas. Onde poderiam as gentes buscar perdão e esperança se tais intermediários falhavam em seu ofício? Os fiéis sentiam-se traídos com a evidência do abismo representado pelo que os agentes de Cristo deveriam ser e o que realmente demonstravam ser.”
Substituindo-se o conceito de divindade pelo princípio de probidade que deveria reger a conduta dos homens públicos, em tese responsáveis, na condição de representantes, pela condução do bem da coletividade, temos um cenário de comparação quase perfeito com o desencanto dos cidadãos com o exercício da política na nossa realidade.
Há mais: na época, tal como agora, os iníquos julgavam-se no direito de se considerar idôneos, “se comparados ao clero”. Pensamento semelhante ao do traficante que, ouvido por deputados da CPI do Tráfico de Armas, considerou os políticos desprovidos de autoridade moral para lhe fazerem cobranças ou julgamentos.
Sempre há o argumento de que, lá como cá, os governantes refletem o ambiente moral de suas épocas. Neste aspecto, Bárbara Tuchman observa, em concordância, que “os papas da Renascença eram modelados e dirigidos pela sociedade”, mas ressalva: “A responsabilidade do poder freqüentemente exige resistência” e capacidade de redirecionar as circunstâncias ao caminho do equilíbrio, guardando distância da vilania e das deformações.
“Ao invés disso”, aponta, “os papas sucumbiram ao que havia de mais nefando na sociedade, exibindo, ao lado da visível e crescente inquietação social, largos rasgos de inspirada visão bitolada”.
Quanto mais se degradavam, mais os papas desmoralizavam a Igreja, aumentavam a revolta dos fiéis, obtinham resultados perniciosos, estreitavam seu caminho na direção do desastre.
Poderiam ter feito diferente? Na visão da historiadora, sim, “com um trabalho de purificação iniciado nos altos escalões” por um papa que liderasse o processo e fosse sucedido por pontífices empenhados na mesma tarefa de extirpação “das práticas mais detestáveis”.
Mas optaram por “dissipar esforços nas trilhas miúdas da cupidez pessoal” e tornaram crescentes as hostilidades.
Constatação da autora: “Nossa espécie, quando se trata de governar, apresenta resultados bem menos brilhantes dos que os obtidos em outras atividades humanas.”