Gaudêncio Torquato
Há duas semanas, no Aeroporto Internacional do Rio de Janeiro, um deputado do PT da Bahia abordou, aos brados, o presidente do PPS, deputado Roberto Freire (PE), com uma provocação que causou frisson: "Como é que você deixa o campo da esquerda para fazer aliança com a direita?" O parlamentar pernambucano não deixou por menos: "Faço aliança com quem quero, menos com ladrão." Risos e aplausos dos ouvintes. O bate-boca não mereceria registro, não fosse pelo fato de que revela a cegueira que turva a visão de parcela do corpo parlamentar do País. O Muro de Berlim caiu, as duas Alemanhas se unificaram e conceitos de esquerda e direita perderam o sentido clássico. Sobranceiros representantes do povo brasileiro, porém, continuam a enxergar na careca de Lenin o farol da consciência. E, pior, não se dão conta de que é extemporâneo falar em esquerda quando ondas tsunâmicas de corrupção devastam sua praia, afogando mensaleiros e sanguessugas, nivelando partidos e corroendo os últimos vestígios da imagem parlamentar.
Do diálogo ríspido entre os dois parlamentares, indagações e ilações podem ser extraídas, entre elas a questão central suscitada na interpelação: onde está e para onde vai a esquerda no Brasil? Para começar, ela freqüenta mais a boca e menos a consciência de nossos políticos. É um verbete que funciona como graxa para limpar perfis corroídos. Tem perdido charme. Não incorpora mais o escopo do socialismo marxista, inspirado na brilhante análise do velho Karl Marx sobre a formação do capitalismo e a previsão de sua catastrófica evolução. Por quase três décadas o PT se escorou nela para chegar ao poder. Driblando situações e esbarrando em contradições, a esquerda tupiniquim amalgamou-se, substituindo o socialismo revolucionário, com seu corolário maniqueísta do bem contra o mal, para ingressar no terreno fofo de uma "socialização humanizada". Para não perder por completo o trejeito, continuou a usar cacoetes como "burguesia decadente" e "elites dominantes".
A "violência como parteira da História", dogma apregoado por Engels e que se firmou na segunda metade do século 19, até que tentou fazer escola entre nós, nos idos de 1960, mas foi repelida pela ditadura militar. A redemocratização do País abriu espaço para vastas áreas no canto esquerdo do arco ideológico. Formava-se nova argamassa para acomodar as estacas do alquebrado socialismo revolucionário e os tijolos do liberalismo político e econômico. Nem Estado mínimo nem Estado máximo, mas um ente de tamanho adequado. A essa composição se agregaram expressões como "capitalismo de face humana" e "socialismo de feição liberal", tentativa de convergir eficiência econômica com bem-estar social. O nome de tudo isso? Social-democracia. A formosa dama chegou ao Brasil em fins dos anos 1980, com interpretação do PSDB, cujos ideólogos escreveram um texto, Os desafios do Brasil, sobre as crises da contemporaneidade, a textura da democracia social na Europa, as estratégias de crescimento e as políticas para o nosso desenvolvimento. Por tentativa e erro, nosso arremedo social-democrata entrou no terceiro milênio, ganhou o centro do poder e foi acusado de se curvar ao Consenso de Washington. De onde partia a crítica? Do PT e pequenos satélites. Deu certo. De tanto bater, as "esquerdas" alcançaram a alforria. Adentraram o Palácio do Planalto. Mas as linhas gerais da tal política neoliberal foram preservadas.
Aí veio o mensalão. Soçobram as últimas pilastras leninistas-marxistas do PT. Sujam-se bandeiras de todos os partidos. Agora, da lama saem os sanguessugas. Que matiz de esquerda se distingue nesse lamaçal? Apenas traços quase indistintos de uma ou outra sigla nanica de entonação trotskista. O velho PC do B, do neocristão Aldo Rebelo, não pode mais se classificar como ícone esquerdista. O que se distingue é um espaço central onde as siglas vegetam. Todas elas pregam posições social-democratas como liberdade política, controle social do mercado e organização da sociedade civil. Nada disso, porém, resiste às injunções do patrimonialismo, praga que consome a lavoura partidária. Por isso, ante a pergunta sobre os rumos da esquerda, só há uma resposta: ela caminha para o centrão das conveniências. Até porque o Brasil repele as margens radicais. O perfil do País - extensão territorial, sistemas econômico e tecnológico, infra-estrutura, integração geoeconômica, cultura e organização social - se encaixa numa moldura social-democrata de tom progressista. Coisas como neocomunista ou neofascista se tornam extravagâncias.
Movimentos que procuram radicalizar, como o MST, têm espaço para se expandir, mas encontrarão resistências caso ultrapassem limites e ameacem a estabilidade. Comparar o Brasil com a América andina é confundir alhos com bugalhos. Hugo Chávez tem tanta semelhança conosco como o alfajor argentino com a nossa cocada. Há ainda duas curvas para se chegar ao cantinho das esquerdas: a estrutura partidária e a organização social. Das 29 siglas registradas no TSE, sobrarão não mais que 8, depois de aplicada a cláusula de barreira. PPS, PSB ou PDT - caso consigam registro - são siglas com acento social-democrata e, é compreensível, se consideram de esquerda. O PT até poderá continuar a desfraldar a bandeira esquerdista. Mas começa a esconder a cor vermelha. Cairá no descrédito. Após o mensalão, o partido perdeu força moral para se caracterizar como tal. E Heloísa Helena? Esta, sim, tem forte identidade. Parece autêntica. Porém é mais símbolo de indignação do que compromisso com ideologia.
Ao deputado baiano que questionou o colega do PPS resta a esperança de que, um dia, sairá do coma como a mãe do personagem Alex, que não viu a queda do Muro de Berlim, no engraçado filme Adeus, Lenin. E, se persistir com as furiosas interpelações, poderá ser condenado a ouvir um pito semelhante ao que Churchill passou num sujeito chato que se engasgou ao aparteá-lo: "V. Exa. não devia deixar crescer uma indignação maior que a que pode suportar."