Entrevista:O Estado inteligente

terça-feira, maio 02, 2006

Perfeitos idiotas latino-americanos Por Reinaldo Azevedo

PRIMEIRA LEITURA

Dia desses, um articulista que tem fama de ser "amigo do povo" — não é assim um Marat, mas gosta de fazer embaixadinhas politicamente corretas — reclamava do fato de o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso ter cravado a expressão "utopia do possível". Fiel à etimologia (a hipótese de que tenha lido Thomas Morus é menos provável), indagava: se é "utopia", como pode ser "possível"? Segundo ele, o tucano fizera a opção preferencial pela mediocridade, mal que o escrevinhador também enxergava em Lula.

Entenderam? O defeito do Apedeuta estaria em se parecer com FHC e pouco consigo mesmo. Como se trata de um desses articulistas isentos, que não cedem à patrulha "da direita", para bater em Lula, ele, corajosamente, bate primeiro em FHC. Vale dizer: é mais lulista do que o próprio Apedeuta. Lula não acreditava no que ele próprio dizia, mas o jornalista acreditava em Lula... Havia um tempo em que eu dizia que a burrice no Brasil era mato. Já temos mais burrice do que mato.

O pobre não sabia, mas a história das idéias que o empurrava para a censura severa à "utopia do possível" tem marcas genéticas que remetem a duas doenças: na versão benigna (ainda assim, um mal), é populismo; na versão maligna, leninismo. Os picaretas que hoje brotam feito praga na América Latina vão de um ao outro segundo as circunstâncias e as necessidades. Pois bem, caro articulista inconformado com os limites do possível: é mesmo possível fazer diferente; você tinha razão. Eis aí Evo Morales. O Aliado de Hugo Chávez e de Lula acaba de passar a mão nos investimentos que a Petrobras fez naquele país. O Apedeuta saudou a sua eleição e disse que ela representava o avanço da democracia no subcontinente.

Mais ainda: está demonstrado o tamanho que Lula tem mesmo na América do Sul. Morales está cumprindo rigorosamente os passos de um programa combinado com Hugo Chávez, que, evidentemente, desconfia das credenciais, digamos assim, revolucionárias do Apedeuta. Se eu fosse qualquer um daqueles dois demagogos — Chávez ou Morales —, também desconfiaria. Representante de uma nova classe social, Lula e seus rapazes querem é se dar bem na vida. E, para tanto, se tiverem de jogar no lixo o Estado de Direito, eles jogam.

O Brasil acaba de ser tungado por um movimento supostamente nativista na Bolívia sem ainda experimentar a graça de ser, vá lá, imperialista. Eis a grande conquista da diplomacia presidencial na gestão Lula. Quem viu Lula na TV no domingo ou leu o seu discurso ficou sabendo que, não obstante, o Brasil nunca esteve tão bem. Em seguida, farei uma digressão para depois voltar à questão.

A digressão
A corrupção é, no governo Lula, o que foi a tortura durante a ditadura militar. Existia, mas não tinha grande importância porque a economia ia bem. Assim como se fazia com a violência, cobre-se agora a bandalheira com o véu do triunfalismo. E, evidentemente, há uma diferença importante entre o regime dos generais e o do Apedeuta: naquele caso, havia, de fato, crescimento econômico para valer. Não limpava uma manchinha de sangue das agressões às instituições e aos direitos humanos, mas o avanço da economia era real. No caso de Lula, estamos agüentando um governo onde o procurador-geral viu atuar uma "quadrilha", uma "organização criminosa", sabendo – aos menos o sabem alguns – que se aposta na mediocridade.

Tenho escrito sobre política ao longo dos últimos 10 anos, desde que voltei para São Paulo, em agosto de 1996 – estava morando em Brasília. Na capital, também lidava com o assunto, mas era um trabalho mais ligado à edição do que ao texto de análise. Ou, se quiserem, considerem mesmo o termo "militância". Não é militância partidária – esse tempo já foi; ficou lá perdido entre os 14, 15 e os 21 –, mas em defesa de alguns valores.

Basicamente, combato qualquer sacripanta que se julgue no direito de definir o que devo ou não dizer e escrever, o que devo ou não pensar. Ou, ainda, mais especificamente: chuto a canela de todo imbecil que resolve embrulhar a verdade num pacote que sirva aos interesses ou às utopias (especialmente estas, mais perigosas) de um grupo, de uma legenda, de uma ideologia. A sorte tem me ajudado, neste tempo, a só escrever o que quero, como quero, segundo a minha vontade. A degeneração intelectual da imprensa – com as exceções de sempre, claro... – nesse período é enorme. Lula chegou ao poder, e a "intelligentsia" jornalística foi-se revelando.

Só acredito em indivíduos. Boi é que nasceu para viver em manada. Quem renuncia a dizer o que pensa em nome do bem da humanidade está apto a cometer um crime. Quando menos, a silenciar diante de um. Dizem que isso é coisa da direita. Os esquerdistas estão sempre atrás de utopias e costumam ficar zangados quando alguém fala no "possível". Há "pensadores" doidinhos por um líder disposto a promover o "aggiornamento" do Brasil, assim como Morales "cumpre a palavra" na Bolívia. Lula só não faz mais besteira porque as instituições, ao menos por enquanto, não permitem, não porque lhe faltem conselhos e conselheiros para tanto.

É claro que essa gente não tem a menor idéia do que fala ou do que gostaria de ver realizado. Mas parece simpático afirmar que você, afinal, partilha de um sonho coletivo. Eu não partilho de nenhum, é claro. Ao contrário: acho que a vida em sociedade é sempre a nossa inimiga, ainda que não haja alternativas. Mas, ao menos, reajo sempre que tentam meter o bedelho nas minhas liberdades pessoais. Abaixo Rousseau!

A digressão da digressão
Compreendo essas almas cândidas. Salvador Allende, por exemplo, "ao menos tentou". O juízo nada mais é do que baixa moral. Era tão evidente que conduziria o Chile ao caos! Mas passou a integrar a galeria de mártires latino-americanos por conta do gorilismo daqueles que o derrubaram e de seu gesto teatral, no desfecho daquela crise. Nada poderia ser mais exibicionista do que seu último ato, de que a foto que correu o mundo é emblema: ele, de arma em punho, nos corredores do Palácio de la Moneda, vivendo, até o fim, a sua "utopia do impossível". É significativo que tenha se matado. Caso fosse preso e, quem sabe, assassinado, ajudaria a denunciar com mais evidência o caráter dos que o derrubaram.

Faltava-lhe, no entanto, o tutano stalinista, embora fosse um informante de Moscou, o que só se sabe hoje. Não houvera se doado à causa; ao contrário, ele a havia privatizado, como um bom herói romântico e burguês. Um comunista legítimo teria feito como o russo companheiro de cela de Graciliano Ramos em Memórias do Cárcere: se o partido mandasse, ele se mataria. Sem a ordem, de jeito nenhum! De todo modo, alguns colunistas brasileiros devem ficar, ainda hoje, bastante excitados com a cena. Ou, então, com as imagens que vieram à luz de Che Guevara, já prisioneiro do Exército boliviano, primeiro apenas detido, depois agonizante, morto e, finalmente, as mãos cortadas.

 "Oh, Cordeiro do Povo que tira os pecados do mundo..."

Che era um assassino frio, conforme relata Régis Debray em um de seus escritos. Devia saber: fez guerrilha com ele. A máquina de produzir mentiras e de desqualificar pessoas do esquerdismo diz que foi o francês quem entregou o amigo aos bolivianos. Para mim, tanto faz. Não acho que o cretinismo de Debray fosse menor. Che já tinha feito uma grande besteira no Congo e conseguiu escapar. Aí se aventurou na Bolívia, onde não estavam dadas as condições mínimas para uma revolução – fossem aquelas definidas por Marx e depois atualizadas por Lênin, fossem as que encontrou em Cuba, onde a geografia ajudava.

É impressionante que não se tenha estudado, até agora, em sua personalidade, uma compulsão suicida — ao lado, obviamente, da homicida, que ele realizou tão bem. Se tivesse sete vidas, teria se deixado matar sete vezes; se Allende as tivesse, teria se suicidado igual número. Certas biografias só dão a devida liga com o ingrediente da tragédia pessoal ou coletiva — tanto melhor se forem ambas. Tivemos, por exemplo, o nosso Getúlio Vargas, de quem a historiografia marxista puxa o saco até hoje.

Nesse estrito sentido, ainda bem que Lula é um homem covarde, como todos nós, e dono de uma moral mais elástica do que a da maioria de nós. Vamos louvar o fato de que a nova classe que chegou ao poder é mais dionisíaca (um Dioniso bem mequetrefe, mixuruca) do que apolínea. Eles querem é se dar bem. Estão no bem-bom. Evitarão gestos bruscos. Vão comendo as instituições pelas bordas. Quem sabe a gente consiga organizar a reação...

De volta
Por que escrevo isso tudo neste 1º de Maio? Porque Lula decidiu ceder aos apelos de seus críticos de esquerda e flertar com a "utopia do impossível"; decidiu que devemos ser um país de "causas", o que ficou claríssimo no pronunciamento de domingo. Pouco importa que tenha mentido ao falar da auto-suficiência do petróleo; pouco importa que tenha mistificado a questão dos juros — abordou os nominais, não os reais, ainda nos patamares de 2002, quando o país exportava a metade, e o risco era 10 vezes maior —; pouco importa que a elevação do poder de compra dos salários mais baixos esteja dado pelo dólar barato e não pelo crescimento econômico, que atrairia investimentos, hoje em patamares medíocres.

O perfeito idiota latino-americano assume características variadas na América Latina, mas é indiscutível que uma coisa os une: a exploração do sentimento nativista, patriótico — o último refúgio dos canalhas, como já cravou Samuel Johnson. Chávez faz lambança com o seu petróleo farto; Lula, com o mercado hospitaleiro às commodities brasileiras; Morales, com os seus "gases"; Kirchner, com as culpas que o FMI ainda tem pelas bobagens que fez na Argentina.

Muitos dirão que Lula é diferente, que se distancia das irresponsabilidades de seus pares. Os únicos que fingem acreditar nisso são os responsáveis pelo Departamento de Estado dos EUA, que apostam num Brasil mais friendly do que esses outros parceiros. Vá lá: Lula, por enquanto, é mesmo um risco maior para os brasileiros. Até porque a batalha pela liderança da América do Sul ele já perdeu para Chávez.

Só pra arrematar
Rui Nogueira escreve nesta edição sobre a greve de fome de Garotinho. Camus escreve em O Mito de Sísifo que o suicídio é a única questão filosoficamente relevante. Como sabem, estou entre os que acreditam, sim, que a gente pode estar 100% certo e convicto das coisas. Não desista, governador. O "garotismo" faz por merecer um mártir. Por que não o senhor? 

[reinaldo@primeiraleitura.com.br]
Publicado em 1º de maio de 2006.

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