Entrevista:O Estado inteligente

terça-feira, maio 16, 2006

O invisível se materializou, e o governo tornou-se espectro Por Liliana Pinheiro

PRIMEIRA LEITURA


Enquanto as autoridades faziam campanha eleitoral "365 dias por ano", como gosta de dizer o presidente Lula, o crime organizado compôs seu exército, com código particular de conduta e sofisticada ideologia. O Estado de São Paulo não foi sitiado nos últimos quatro dias. Apenas passou a ver um mundo que já ocupava o mesmo espaço dos cidadãos, mas até então de forma quase invisível. Agora, está tudo às claras, como no Rio de Janeiro já estava. Nos outros Estados, é questão de tempo que o crime se materialize para além das penitenciárias, no cotidiano dos homens de bem, das empresas e dos bancos.

A boataria tomou conta do Estado mais rico da nação nesta segunda-feira. Traduziu o grau de pânico acumulado numa sociedade acuada faz tempo pela violência e a desconfiança nas autoridades, que tentavam afastar as versões sobre o risco de se ficar nas ruas. Ninguém acreditou. As pessoas acreditaram mais no crime organizado. Queriam, simplesmente, chegar em casa. Foi como num dia de blecaute — só que, no caso, apagou-se a confiança nas instituições, tornadas espectros, e iluminado, mesmo, só havia onipresente poderio do tráfico e da bandidagem unidos em torno de seus líderes.

Milhares de quilômetros de congestionamentos na capital paulista e nas cidades vizinhas mostraram o grande êxodo rumo ao espaço privado — o público pertenceria, logo mais à noite, aos ratos. As linhas de celulares ficaram congestionadas, com as famílias se buscando. As pessoas que não usavam automóveis foram vistas dando passos largos por uma imensa região sem transporte nem auto-estima. Chegar em casa, e mais nada, passou a ser o esforço de todos os que se aventuraram a sair.

A internet virou território de especulações, como espelho de um modo de vida que ruiu. Era tudo mentira o que diziam no reino da comunicação livre e sem autoria definida. O espaço A não foi metralhado nem o espaço B foi destruído. Também não havia determinação de um toque de recolher. Ou melhor, mentiras propriamente, não eram. A internet apenas revelou a verdade do caos. O toque de recolher estava claro muito antes das mensagens catastróficas. Foi opção, não determinação.

Thomaz Bastos falou. O presidente Lula falou. Nada de "mágicas", repetiam. Nada de "planos mirabolantes". A mágica e os planos mirabolantes, mal eles sabiam, já estavam em cada roda de cidadãos, que buscavam respostas práticas para esse estado de coisas. À falta de ação dos governos diante das ameaças que já são antigas, as pessoas comuns propunham as mais terríveis soluções.

Mas as pessoas também faziam perguntas. Essas sim merecem respostas rápidas e muito claras dos governantes se não quiserem, eles mesmos, acabar como parte importante das mágicas populares num ano eleitoral. A indagação mais recorrente: como é que podem os líderes do crime organizado controlar seu exército de malfeitores a partir dos presídios?

Os governantes terão de explicar, por exemplo, por que União e Estados, sabendo que um sistema de bloqueio de telefones celulares para um Centro de Detenção Provisória custa apenas R$ 300 mil, não investiram nisso. Em presídios, o custo é maior, e muitos já têm bloqueadores, mas não receberam os devidos reparos nos sistemas, que se tornaram insuficientes há mais de dois anos, a partir das novas faixas de freqüência da comunicação móvel. Ninguém viu isso?

Algumas penitenciárias, por economia, optaram por sistemas de raios X para que aparelhos de telefone e rádio não fossem levados para dentro das celas. Continuaram entrando, como sabem os milhares de brasileiros que já receberam achaques por telefone, em ligações que comunicavam falsos seqüestros de familiares a partir de prisões.

Sem mágica nem plano mirabolante, pelo menos isso os governantes terão de responder: por que deixaram o crime montar um exército, comandado por líderes presos, sob as barbas do aparelho de Estado? Por que cortaram verbas para a segurança pública quando era evidente o avanço do crime organizado? O que estavam fazendo além da campanha eleitoral de "365 dias por ano"?

Todo debate sobre segurança pública, no fundo, é velho. Já se sabe o que fazer no país: qualquer coisa de tudo o que já foi dito e que seja implementada com rigor e competência. Busquei centrar na questão dos celulares para mostrar a simplicidade de determinadas ações que não são tomadas por falta de iniciativa de tantos ineptos no poder.

Não somos presas de políticas de segurança equivocadas, mas da inexistência de qualquer coisa que se pareça com um plano de ação. Somos vítimas de governantes irresponsáveis.

A questão é estadual, mas fundamentalmente federal. São Paulo virou Rio, que virou Brasil.

[ liliana@primeiraleitura.com.br]
Publicado em 15 de maio de 2006.


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