Entrevista:O Estado inteligente

quarta-feira, maio 10, 2006

Míriam Leitão - Não se falou




Panorama Econômico
O Globo
10/5/2006

O ministro Celso Amorim sabe que nenhum dos críticos da política externa neste episódio da Bolívia propôs que fosse usado o porrete. Ele criou esta falsa dicotomia porque isso facilita o trabalho de encobrir os erros de um dos piores momentos da diplomacia brasileira. Faria melhor Celso Amorim se dissesse que ele é um chanceler peculiar: aceitou dividir sua cadeira com Marco Aurélio Garcia.

Celso Amorim é sempre elogiado pelos colegas por sua inteligência. Quando critica os críticos da desastrada condução da crise da Bolívia, dizendo que "a política externa do Brasil nunca foi do porrete e sempre defendeu a boa vizinhança", está usando a inteligência para iludir. Ele sabe que todos os ex-diplomatas que criticaram a tibieza da posição brasileira não querem porrete e, sim, o uso da diplomacia brasileira, com todas as suas muitas armas pacíficas, com a sua notável vocação para a boa vizinhança, para a defesa do interesse nacional.

São contra o porrete e a favor da boa vizinhança os veteranos diplomatas que criticaram a condução do episódio, como os embaixadores Rubens Ricupero, Paulo Tarso Flecha de Lima, José Botafogo Gonçalves, Rubens Barbosa, Sebastião do Rego Barros, Sérgio Amaral, Marcos Azambuja. Normalmente discretos, usaram palavras fortes para criticar a posição brasileira nesta crise porque consideraram que os erros foram muitos e abrem um precedente perigoso.

Adianta pouco o ministro dizer agora que, a portas fechadas, o presidente Lula reclamou da interferência de Chávez ou protestou contra as tropas na empresa brasileira. O presidente deveria ter sido orientado pelo seu chanceler a dar algum sinal público de desaprovação e não aceitar uma reunião com Chávez na qual Evo Morales recebeu apoio pelo que fez.

Seria bom se o ministro Celso Amorim demonstrasse interesse em ouvir as críticas e sugestões feitas pelos críticos, principalmente os que falam com conhecimento de causa, como os embaixadores aposentados.

Uma das primeiras críticas é que esta divisão do poder na chancelaria é uma anomalia que tem sido a fonte de uma série de confusões. Todo governo teve assessor internacional, mas não é comum a proeminência que tem Marco Aurélio Garcia. Ninguém duvida, nem no Itamaraty, que quem manda na política externa regional é ele e que o resto do mundo fica para Celso Amorim. É uma esquisitice com a qual o embaixador Celso Amorim tem convivido, aceitando uma confusão institucional que não deveria aceitar. O papel do assessor internacional em outros governos foi o de fazer a ponte com o Itamaraty; auxiliava o presidente nestes temas, mas não competia com o chanceler, não assumia funções de operador, principalmente não usava canais partidários para as relações entre os países, que deveriam passar unicamente pelo canal oficial: o Itamaraty.

Este é um momento difícil para a América Latina. É usar também o dom de iludir afirmar, como faz o governo, que as críticas são à prioridade dada à América Latina pela política externa. Vários governos deram prioridade para a região e o adensamento do comércio regional é uma conquista de várias administrações: o governo Figueiredo resolveu o conflito das hidrelétricas permitindo que o governo Sarney iniciasse a construção do Mercosul, que fechou acordos importantes no governo Itamar Franco, que ganhou mais volume de comércio com a decisão de compras de petróleo na região tomada por Fernando Henrique. Assim caminha o país. Um país não se redescobre do zero, como sustenta o atual governo.

Em todos os textos de especialistas pelo mundo afora, como os publicados, por exemplo, na "Foreign Affairs"; em muitas publicações importantes, como a "Economist"; em todos os relatórios de bancos, o que está se consolidando é a idéia de que o populismo voltou à América Latina. Não é da esquerda que os investidores têm medo. A esquerda assume o poder e depois o perde na Europa freqüentemente. Não é uma esquerda como a do Chile que preocupa; é o comportamento errático, antidemocrático e conflituoso do presidente venezuelano Hugo Chávez que preocupa.

Preocupa não só pelo mal que ele pode causar em termos de desestruturação das relações entre os países da América do Sul, como em relação ao desencorajamento de investimentos internacionais na região. Os investidores julgam os países em bloco. E o investidor que interessa não é o que entra e sai ao sabor da conjuntura financeira, mas o que vem para investimento de longo prazo. Como a Petrobras foi para a Bolívia.

Se a América Latina fica conhecida como uma região problemática, de lideranças exóticas, com idéias obsoletas e com decisões imprevisíveis, estaremos fora de mais uma onda de crescimento do mundo.

O desafio da diplomacia brasileira é duplo: precisa manter as boas relações com os vizinhos, precisa preservar sua imagem como a de um país no qual imperam a racionalidade e o respeito aos contratos, distanciando das práticas em determinados países da região. Não ajuda a ninguém, nem à América Latina, a posição caudatária que o governo assumiu em relação a Chávez. Diariamente o Brasil faz alguma coisa para fortalecer o presidente venezuelano, a de hoje é que a missão brasileira que vai para a Bolívia antes falará com Chávez. Para que mesmo?

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