O Globo |
16/5/2006 |
Não há mocinhos nessa história. Todos se acusam mutuamente, tentando de maneira vergonhosa tirar proveito político da situação, mas não há como se livrar de culpa nem o governo federal, nem os governos estaduais. Muito antes de a tragédia que se abateu sobre São Paulo, sob a forma do mais puro terrorismo, chamar a atenção do mundo para a gravidade de nosso problema de segurança pública, já se sabia que esta seria a questão a ser enfrentada prioritariamente por uma futura administração federal, seja quem for o eleito em outubro. O crime organizado no país, como já suficientemente provado, está enraizado em todos os três Poderes da República, e não é um assunto restrito a estados onde historicamente sua presença sempre foi mais sentida, como o Rio de Janeiro e São Paulo. Não apenas este, mas também os governos federais anteriores, não levaram em conta a gravidade da situação, preferindo sempre atribuir a responsabilidade aos governos estaduais, que, por sua vez, como acontece agora em São Paulo, evitam uma parceria federal com receio de parecerem impotentes no combate ao crime organizado e fortalecerem, assim, o governo federal. Pela primeira vez em muitos anos, no início da gestão de Lula e seguindo uma promessa de campanha eleitoral, o governo federal coordenou um plano de segurança pública para ser implementado em conjunto pelos diversos estados brasileiros, com o objetivo de, a médio e longo prazos, tornar homogêneos os procedimentos policiais e interligá-los, de modo a que o combate ao crime organizado fosse feito de maneira planejada. O Sistema Único de Segurança é a primeira experiência, em nível nacional, de se pensar a repressão policial fora do imediatismo das emergências e toca em pontos cruciais como valorização e formação policial; interligação de bancos de dados, com informações nacionais sobre os crimes e os criminosos; e a recuperação da capacidade tecnológica de investigação e perícia nas polícias estaduais. Mas praticamente não saiu do papel, por questões políticas internas do PT. O idealizador do programa e primeiro Secretário Nacional de Segurança Pública, ligado ao Ministério da Justiça, foi o sociólogo Luiz Eduardo Soares, que foi boicotado insistentemente dentro do governo pelo então chefe da Casa Civil, o todo-poderoso José Dirceu. Boicotado por questões políticas internas no PT, entre elas a tentativa de agradar um aliado do momento, o hoje inimigo ex-governador do Rio Garotinho, de quem Luiz Eduardo também fora colaborador, e por quem foi demitido da Secretaria de Segurança Pública do Rio durante uma entrevista na televisão. Houve também a decisão de não levar para as proximidades do Palácio do Planalto a coordenação do plano de segurança, para não contaminar o presidente Lula com eventuais fracassos. A Secretaria acabou ligada ao Ministério da Justiça e esvaziada pelo contingenciamento de verbas. O Ministério da Justiça investiu apenas 5,5% dos R$ 413 milhões previstos no Orçamento da União de 2005 para o Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP), que reúne recursos repassados aos governos estaduais. No Plano Nacional de Segurança Pública, que inclui o FNSP, só foram usados 28,7% da verba prevista de R$ 1,5 bilhão. O ministro Márcio Thomaz Bastos, da Justiça, gastou no sistema penitenciário apenas 24% dos R$ 111 milhões que foram empenhados no orçamento. Segundo o site Contas Abertas, "os investimentos do governo federal em segurança pública diminuíram 11% em 2005. Foram investidos R$ 475 milhões no ano passado contra os R$ 533 milhões aplicados em 2004, já considerados os restos a pagar de exercícios anteriores. A redução de verbas atingiu três das cinco mais importantes unidades orçamentárias do Ministério da Justiça". Lula, que na campanha eleitoral manifestou estranheza com a incapacidade de o governo federal criar prisões especiais para bandidos de alta periculosidade, e de controlar as comunicações por telefones celulares dos bandidos nas cadeias, ainda não entregou nenhuma das cinco prisões federais prometidas no plano de segurança — as duas primeiras, no Paraná e no Mato Grosso do Sul devem ser inauguradas em junho, promete o ministro da Justiça. Na campanha, Lula garantiu que sua política nacional de segurança incluiria "políticas públicas com foco prioritário na juventude excluída, criando espaços apropriados e estimulando a difusão do esporte, sobretudo nas áreas mais pobres". Em vez disso, saiu-se com uma declaração demagógica sobre um suposto "choque de inclusão" que evitaria a formação em série de bandidos, numa simplificação populista da questão social brasileira e, sobretudo, evitando se comprometer com a repressão ao crime organizado, tarefa inescapável do governo federal. Mesmo que os governos do Rio e de São Paulo, em diversos momentos como os de agora, tenham também, por questões políticas, dificultado ou mesmo recusado o apoio federal, está certo o prefeito do Rio, Cesar Maia, quando alega que só se combate o crime organizado com a centralização das atividades pelo governo federal. Seria o caso de aproveitar o momento trágico para o país para se concretizar o Sistema Único de Segurança que previa diversas medidas polêmicas como a unificação das polícias; reformulação do Fundo Nacional de Segurança Pública, que poderia ser utilizado até mesmo como fonte de recursos para a complementação do pagamento dos vencimentos dos policiais dos estados com dificuldades financeiras para pagar o piso de vencimentos mínimo, que seria também definido; investimentos em qualificação técnica e profissional, e uma completa revisão do código penal e do sistema prisional. |
Entrevista:O Estado inteligente
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