Entrevista:O Estado inteligente

domingo, maio 14, 2006

FERREIRA GULLAR Empresários bisonhos

Folha

  Queimada a sede da UNE no dia 1º de abril de l964, instaurada a ditadura militar, o Centro Popular de Cultura tornou-se inviável. Não dava mais para fazer teatro-relâmpago nos sindicatos, nas praças e nas favelas. Por isso, pensamos em nos transformar num grupo teatral normal, com bilheteria, palco e platéia. Foi aí que nos lembramos do espaço, no shopping center da rua Siqueira Campos, onde o Teatro de Arena de São Paulo havia se apresentado cinco anos antes, e fomos falar com o senador Arnon de Mello, dono do shopping. Alugado o espaço, montado o pequeno teatro, começamos nossas atividades com o show "Opinião", que daria nome ao teatro.
Mas nós éramos comunistas, portanto anticapitalistas e não nos sentíamos muito à vontade em ganhar dinheiro com o trabalho alheio. É certo que o fato de estarmos ali trabalhando pela revolução aliviava a culpa, mas não inteiramente. Por isso mesmo, fora Denoy e Pichín, que cuidavam da administração, nenhum de nós recebia nada, a não ser direito autoral, quando era o caso.
Estávamos condenados à falência. Eis um exemplo: quando montamos "Liberdade Liberdade", oferecemos aos atores porcentagens em lugar de salário fixo, mas Paulo Autran não aceitou, queria um valor fixo, com o que concordamos. A peça estreou, começou a lotar e quem recebia porcentagem ganhava mais a cada semana. Paulo, naturalmente, considerou injusto receber menos que os outros. Resumindo, rasgamos o contrato anterior e passamos a lhe pagar percentagem. Era justo, mas nada capitalista.
O show "Opinião" foi um sucesso de bilheteria, mas o que sobrava para pagarmos o aluguel do teatro, manutenção e impostos não era muito. Depois da temporada no Rio, o show foi para São Paulo, as despesas aumentaram. Certa tarde, fui procurado, na Redação do jornal, por Zé Keti, que ali chegou de chapéu, paletó de veludo e colete, apesar do calor que fazia. Queria meu apoio para que o grupo aumentasse sua porcentagem no show.
Por acaso, na noite anterior, tínhamos nos reunido e constatado que, descontadas as porcentagens pagas aos participantes do espetáculo, tudo o que sobrava para cobrir as despesas era 8%. Estávamos no vermelho.
- Você ganha 9%, não é, Zé Keti?
- O que é muito pouco. Acho que uns 11% já estava bom.
- Tenho uma proposta melhor, falei. A gente fica com teus 9% e você assume o show.
- Como?! Está brincando.
- Não estou, não. Se topa, não preciso nem falar com meus companheiros.
Ele riu sem graça, despediu-se e foi embora. Dessa vez, agi como capitalista.
"Liberdade Liberdade" despertara a fúria dos milicos. Não obstante, por exaltar a liberdade, criticava também o caráter autoritário do regime socialista. Terminado o espetáculo de estréia, um companheiro do partido, intelectual de renome, levantou a voz em protesto, considerando um absurdo que o Grupo Opinião fizesse o jogo dos anticomunistas. Tratamos de acalmá-lo, mas ele, inconformado, exigiu que a questão fosse levada ao comitê cultural do partido. Lá, ele foi fragorosamente derrotado; deprimido, trancou-se em casa, injuriado, por mais de uma semana. Mais revoltado do que ele contra a peça, só mesmo um grupo paramilitar que tentou provocar baderna durante o espetáculo e foi repelido pela platéia: os berros de "abaixo o comunismo" foram abafados pelas palmas do público, que gritava "liberdade, liberdade!".
Com alguns meses de inaugurado o teatro, Teresa Aragão, apaixonada pela música popular, especialmente a das escolas de samba, sugeriu fazer, todas as segundas-feiras, a apresentação de compositores, cantores, passistas e ritmistas sob o nome de "A Fina Flor do Samba", primeiro passo para mostrar à zona sul do Rio a riqueza musical dos subúrbios cariocas. Naquelas noites de segunda-feira, muito sambista se revelou, inclusive Martinho da Vila, que era então sargento do Exército. Outra revelação que encantou a platéia foi a Nêga Pelé, de corpo escultural e ginga elegante de passista. Seu êxito foi tanto que, pouco depois, a contrataram para dançar no Golden Room do Copacabana Palace. Quando ela reapareceu no Opinião, meses mais tarde, já não tinha o mesmo corpinho elegante: passara a comer bem e engordara. Mas seus companheiros de escola estavam exultantes:
- Agora é que ela está bonita, de pernas grossas, forte, com muita saúde!
Gostar de mulher magra já era, naquela época, coisa da zona sul.
Caso engraçado foi do ator Fregolente, que fazia, na peça "Se Correr o Bicho Pega, se Ficar o Bicho Come", o papel do coronel Honorato. Dera para beber antes do espetáculo e passara a errar as falas. Já duas noites consecutivas, em vez de dizer "Comi a mulher de Brás das Flores", dizia: "Comi o Brás das Flores", o que comprometia o personagem. Encarregado de conversar com ele, chamei-o à parte e, cuidadosamente, expus-lhe o problema.
- Deixa para tomar teus uísques depois do espetáculo, está bem, amigão?
Fregolente olhou-me nos olhos, seu rosto foi ficando vermelho de raiva e começou a gritar:
-Kremlin, Kremlin! Os comunistas querem me proibir de beber!
Passado o susto, comecei a rir. E ele continuou, todas as noites, na peça, a dizer que comeu o Brás das Flores.

Arquivo do blog