Entrevista:O Estado inteligente

domingo, maio 14, 2006

A esquerda e a América Latina RUY FAUSTO

FOLHA


No caso cubano, o igualitarismo já ficou para trás -mesmo se a desigualdade no capitalismo é maior


As vitórias eleitorais que vem obtendo a esquerda na América Latina -e a jogada recente de Evo Morales- levantam o problema do significado geral desse novo curso e das perspectivas que, com ele, se abrem. Há algum tempo, um publicista de extrema-esquerda "simplificava" o fenômeno, falando em luta entre o "velho" (o "imperialismo" e seus agentes) e o "novo", em cuja coluna incluía Lula, Tabaré Vázquez, Kirchner, Chávez e Castro. Esses dois últimos apareciam um pouco como modelos entre os que lutavam contra o "velho"...
A esse tipo de simplismo, nada inocente, conviria opor o que escreve Teodoro Petkoff, ex-guerrilheiro venezuelano e principal representante da esquerda anti-Chávez, num artigo publicado no ano passado, intitulado "As duas esquerdas". Petkoff escreve que "o conceito de "esquerda" pode ser mistificador". "Encobre muito mais do que revela, e aplicado indiscriminadamente pode conduzir a grandes erros de apreciação." O autor distingue dois grupos, cujas "contradições" assinalam o que chama de "esquerda bourbônica" (alusão à casa real) ou "arcaica". O outro é o que "marcha por um caminho de reformismo avançado", compatibilizando "sensibilidade social", "desenvolvimento econômico com eqüidade" e "aprofundamento da democracia". Neste segundo grupo inclui Lula, Tabaré Vázquez, Lagos (o texto é anterior à eleição de Bachelet), Kirchner e, "com um perfil mais baixo, os governos de Leonel Fernandez na República Dominicana, de Martín Torrijos, no Panamá, e de Bharret Jagdeo, na Guiana" (este último, membro do Partido Progressista Popular Guianês, fundado por Cheddi e Janet Jagan, partido afastado do poder pelos ingleses, em 1953).
Hoje, seria preciso acrescentar, ainda, o governo de Oscar Árias, na Costa Rica. No outro grupo estão Castro e Chávez, e a ele poderiam se incorporar, continua Petkoff, movimentos de países como a Nicarágua, El Salvador e Bolívia (o autor se refere ao MAS de Morales, que ainda não tinha chegado ao poder).
O artigo de Petkoff interessa tanto pela análise das condições que tornam possíveis as vitórias da esquerda (não tão paradoxalmente, o fim da Guerra Fria é uma delas), como pelo que ele escreve a respeito de Chávez. Petkoff reconhece o prestígio de Chávez, e a "validade conceitual" de algumas das suas "missões", mas aponta para a "corrupção" e o "favoritismo" na aplicação delas, e para a formação de uma nova burguesia "bolivariana", "surgida no calor da corrupção e dos negócios". E embora deixe a última palavra para o futuro, afirma que Chávez, autocrata e militarista, está "condenado ao fracasso".
A leitura do texto levanta duas questões. A primeira se refere ao alcance e às implicações da oposição entre as duas esquerdas. A segunda é mais específica. Admitido o caráter não-populista-totalitário do governo Lula, como pensar a relação entre essa caraterística (positiva) e a prática corrupta desse governo?
Sobre o primeiro ponto, se diria que, em termos formais, o problema -como se lê no texto- é o de saber qual o estatuto dos "inimigos de nossos inimigos". No período anterior, supunha-se que o inimigo do nosso inimigo seria necessariamente nosso amigo. O progresso consistiu em pôr em dúvida essa exclusão de um terceiro: em vez de uma disputa "dual", entre "nós" e o "imperialismo", a luta política na América Latina foi aparecendo como um jogo pelo menos triangular. Em termos de conteúdo, o problema é o de saber qual estatuto atribuir a governos totalitários, ditatoriais ou tendendo a uma ditadura (é o caso de Chávez), que se dispõem a realizar certo número de programas sociais.
Essa pergunta, por sua vez, se subdivide. Num plano mais geral e abstrato, trata-se de determinar qual o peso que um socialista democrata deve atribuir à exigência de "liberdade" diante da exigência de "igualdade". Mas aquém dessa questão teórica importante estão pelo menos duas interrogações "concretas": 1) em que medida esses regimes são efetivamente igualitários?; 2) qual o destino deles, que perspectivas podem ter, e sobretudo, de que maneira eles se relacionam com os projetos de uma esquerda não totalitária nem ditatorial? Se considerarmos o caso cubano, o igualitarismo já ficou para trás (mesmo se a desigualdade no capitalismo ainda é maior). Já em matéria de liberdade o poder castrista aparece, simplesmente, como regressivo em relação aos princípios de... 1789. Passados cinqüenta anos de violências de toda ordem, e dissipada a miragem da igualdade, ele não pode mais ser considerado, como pretendem alguns, como uma ditadura revolucionária "deformada": é, na realidade, um regime retrógrado e, à sua maneira, um poder "contra-revolucionário". Mutatis mutandis, o regime de Chávez não se sai muito melhor.
Num próximo artigo, retomo o tema da oposição entre as duas esquerdas, e comento o estatuto do governo Lula, governo não-ditatorial (nem semi-ditatorial), porém corrupto.


Ruy Fausto, filósofo, é professor emérito da USP e autor de, entre outras obras, "Marx - Lógica e Política" (Editora 34).

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