Entrevista:O Estado inteligente

segunda-feira, maio 01, 2006

Brasil e Bolívia – as falácias do índio e do ingênuo

PRIMEIRA LEITURA
Brasil e Bolívia – as falácias do índio e do ingênuo
Por Renato Andrade

O presidente da Bolívia, Evo Morales, está cada vez mais próximo de um momento de inflexão de seu recente mandato. A realidade bate à porta, e Morales sabe que não tem condições de cumprir sua principal proposta de campanha: a estatização do setor de gás e petróleo de seu país. Mas continua, ao menos em público, a apresentar o mesmo discurso aguerrido dos tempos de palanque. A Petrobras e a EBX podem contar melhor a história.

No Brasil, o presidente Lula foge da realidade há muito tempo. Não sabia do mensalão, não sabia da formação de uma "organização criminosa" para mantê-lo no poder e diz agora ignorar que a Petrobras enfrenta dificuldades nas negociações de contratos de fornecimento de gás com o governo Morales e que a EBX, de Eike Batista, está sendo praticamente enxotada da Bolívia depois de milhões de dólares em investimentos.

Enquanto isso, dá mostras de real entusiasmo com a construção de um projeto faraônico: um megagasoduto de 9,7 mil quilômetros de extensão que atravessaria o Brasil para ligar o mercado produtor de gás da Venezuela ao consumidor da Argentina, uma obra orçada em quase R$ 50 bilhões.

Temos, portanto, de um lado, o índio lutador aguerrido e, de outro, o ingênuo que fez mais do que qualquer outro nestas terras desde que Cabral aportou suas caravelas pelas bandas de cá.

Não fossem presidentes, as duas formas de delírio custariam apenas ironias e deboche. Mas, como a realidade é outra, a postura de Morales e Lula terá um custo mais alto para as sociedades boliviana e brasileira.

Vamos aos fatos. Não há como Lula manter essa postura reativa diante de crises que se anunciam. A Petrobras é a maior empresa brasileira. A União é sua maior acionista. Não há espaço, portanto, para que o presidente brinque com a idéia de não saber o que acontece com a companhia. Vale lembrar que foi essa mesma empresa que garantiu ao governo abrir os cofres públicos no início deste ano e, ainda assim, cumprir a meta fiscal.

No caso da EBX, ainda que existam dúvidas sobre as reais condições em que o investimento da empresa brasileira foi feito, o fato é que a Presidência da República precisa ser pró-ativa numa situação em que um país vizinho resolveu enxotar a companhia e ameaçar confiscar os dois alto-fornos já construídos, que custaram nada menos do que US$ 50 milhões.

Evo Morales, por sua vez, terá de descer do palanque e passar a administrar seu país com base na realidade, e não nas promessas. Não é uma situação fácil, dado que ele foi eleito para fazer o que vocifera. Mas caberá ao presidente eleito mostrar aos seus aliados que um país que gera um Produto Interno Bruto (PIB) de US$ 8 bilhões não pode se dar ao luxo de dispensar uma empresa como a Petrobras, que investiu, somente em 2005, cerca de US$ 1 bilhão na exploração de gás.

Chegamos então ao gasoduto. Ainda que existam vozes a defender o projeto, um pouco de sensatez nas discussões não faria mal a ninguém. De onde Brasil, Argentina e Venezuela tirariam os recursos necessários para o desenvolvimento do projeto? Como conseguir licenças ambientais para instalação de um duto que percorrerá toda a floresta Amazônica e o restante do país, considerando, apenas como exemplo, o fato de que a Petrobras enfrenta há 10 anos uma batalha para conseguir construir um duto de 700 quilômetros, entre Urucu e Manaus, no Estado do Amazonas?

Ainda que existam argumentos econômicos e técnicos que justifiquem a construção do gasoduto, o debate sobre o projeto não foi devidamente feito. Além disso, está calcado numa suposta afinidade política dos atuais mandatários argentino, venezuelano e brasileiro. Nada mais suscetível a mudanças. O projeto também pode inviabilizar propostas mais palatáveis de produção de gás no Brasil, considerando as novas jazidas descobertas em Santos, no litoral paulista, no Rio e no Espírito Santo. O projeto deixaria ainda às moscas outra alternativa bem mais barata: ampliar a parceria entre Brasil e Bolívia, que levaram 30 anos para construir um gasoduto ligando os dois países, mas que ainda não é explorado em sua plenitude.

Mas, para que isso aconteça, é preciso mais ação do lado brasileiro e menos discurso do lado boliviano. Mas há como esperar sensatez do índio e do ingênuo?

[renatoandrade@primeiraleitura.com.br]
Publicado em 28 de abril de 2006.


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