Entrevista:O Estado inteligente

domingo, fevereiro 19, 2006

O encontro de Jango com Kennedy

LUÍS NASSIF

FOLHA
Jango só chamava seu ministro da Fazenda, Walther Moreira Salles, de embaixador. Respeitava-o e citava freqüentemente as referências positivas de Vargas a seu respeito.
O destino foi injusto com Jango, pensava o embaixador. Era um homem de boa-fé, um conciliador. Mas havia a imagem do cunhado, Leonel Brizola, que o atormentava, as indecisões e um encantamento marcante em relação a personalidades fortes.
Dedicava ao presidente americano John Kennedy uma admiração juvenil tão intensa que, quando solicitou um encontro com o colega americano, deixou de cabelo em pé seu ministro da Fazenda e o embaixador brasileiro em Washington, Roberto Campos. Ambos tinham receio de que o encontro com Kennedy acirrasse ainda mais as tendências populistas de Jango.
Por prevenção, o embaixador Campos seguiu na frente da comitiva e encontrou-se com Mike Mansfield, líder democrata no Senado e amigo de Walther desde a primeira embaixada. Na inauguração de Brasília, JK o incumbira de convidar o senador Mansfield. Em outros momentos, Walther o hospedara em sua casa, assim como a sua mulher e filha.
Essa intimidade permitiu-lhe falar francamente com Mansfield. Fê-lo entender que Jango demonstrava tendências populistas que às vezes atrapalhavam a gestão da economia. O governo já enfrentava dificuldades com a expansão de crédito do Banco do Brasil. Como Jango era fascinado por Kennedy, seria importante que o presidente americano se contivesse, caso contrário não haveria a menor possibilidade de cumprir as metas acertadas com o FMI.
Mansfield acalmou-o: "Eu arranjo para você falar amanhã com Kennedy".
O embaixador conhecia Kennedy desde seus tempos no Senado. Além disso, era amigo dos pais de Jackie, a primeira-dama. Conhecera a mãe e o padrasto, Hugh Auchincloss, um aristocrata americano, numa viagem de turismo a Nova Déli, quando ainda era diretor da Sumoc. Mais tarde, embaixador em Washington, era freqüentemente visitado pela mãe de Jackie na embaixada e recebido nas recepções de sua casa.
No encontro com Kennedy, o embaixador externou suas preocupações. Dias depois, Jango chegou com a comitiva. A entrevista com Kennedy seria no dia seguinte, às 10h.
Na audiência, Kennedy ficou de frente para Jango. À sua direita, o secretário Douglas Dillon, amigo pessoal de Walther, e o embaixador americano no Brasil, Lincoln Gordon. À esquerda, Dean Rusk. À direita de Jango, San Tiago Dantas. À esquerda, Walther e Campos.
Kennedy começou a falar tendo à sua frente um pedaço de papel. "No ano passado, o ministro Moreira Salles esteve por aqui em missão. Assinamos acordo de renegociação da dívida muito interessante. Mas que interessou, sobretudo, aos banqueiros e industriais do Brasil e dos Estados Unidos. Hoje gostaria de conversar sobre o que interessa aos trabalhadores".
Walther e Campos se entreolharam. Jango não falava inglês. Pelo cerimonial, cabia a Jango ou a San Tiago responder. Mas, num ato de puro reflexo, Walther solicitou a Jango a possibilidade de responder em seu nome. Jango aquiesceu.
"Presidente Kennedy, o presidente Goulart me autorizou a responder em seu nome. Quero agradecer as boas vindas e também dizer que ele ficou muito satisfeito em lembrar os acordos assinados no ano passado. Esses acordos foram muito úteis não só para os banqueiros como também para os trabalhadores. Graças a ele pudemos importar mais, a maior parte da América, garantindo mais emprego para os trabalhadores americanos. O presidente agradece muito e espera que as negociações continuem com cordialidade."
Saíram de lá e foram para o almoço. Kennedy abriu a porta e, quando Walther passou, bateu-lhe no ombro: "Dou-lhe meus parabéns".
Na ante-sala estava Dick Goodwin, responsável pela Aliança para o Progresso, e possível inspirador da fala de Kennedy. Walther o havia conhecido quando ele veio com Dillon para a reunião de Punta del Este.
"Por que você deu aquele papel para seu presidente?"
"Porque esse deve ser o pensamento que deve ordenar nossas relações."

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