Entrevista:O Estado inteligente

terça-feira, fevereiro 21, 2006

Luiz Garcia Haiti, logo ali

O GLOBO

Com certeza existe, produzido pela ONU ou por uma ong, um ranking das nações mais desgraçadas do planeta. Conferi-lo e atualizá-lo deve ser passatempo de estatísticos masoquistas: não se tem notícia de qualquer esforço coletivo, permanente e eficaz dos mais ricos e dos menos pobres para socorrer os completamente miseráveis.

A maioria está na África. Nas Américas, nenhum é mais pobre do que o Haiti. Alguns números: os desempregados são 60% da população; a expectativa de vida é de 53 anos; 77% da população estão abaixo do índice internacional de pobreza.

E mais: quase nenhuma infra-estrutura econômica (de estradas à produção de eletricidade); agricultura praticamente inexistente. A desnutrição é definida como crônica e a falta de acesso à água potável provoca graves problemas de saúde pública. Não há latrinas, por exemplo, em 70% das casas na cidade de Gonaives.

Chega? Em todo o país e em todos os censos e levantamentos, números e índices são igualmente desalentadores. Historicamente desalentadores. Desde o tempo, no século passado, de Papa Doc e Baby Doc — ambos, pai e filho, ditadores cruéis — e também antes. Colonizadores franceses ficaram de 1697 a 1804; os americanos chegaram em 1915 e partiram em 1934. Nenhuma das duas potências ajudou a transformar aquela metade da ilha Hispaniola, descoberta por Colombo em pessoa, num país sequer mediocremente viável.

Inviável está até hoje. Deve-se admitir que, no momento, há um raio de esperança na administração de René Préval, que tem dois pontos a seu favor: foi perseguido pelo ditador Papa Doc e teve papel importante no governo do presidente democraticamente eleito (e, claro, deposto) Jean-Bertrand Aristide. Ele acaba de ser declarado eleito numa espécie de trambique do bem, em que os votos em branco foram distribuídos por todos os candidatos, o que deu a Préval a maioria necessária. Era a melhor solução, mas resolve apenas o impasse político-eleitoral.

Os soldados brasileiros voltarão para casa com a consciência tranqüila e a comunidade internacional, como sempre, apenas voltará as costas. Na herança que espera o próximo governo, ninguém fala ou pensa. Não há previsão — nem, como indicam os números citados lá no começo, condições práticas — de uma reconstrução de cima a baixo. Como ocorreu no raro exemplo de Timor Leste.

E daí? Daí que o mundo é assim mesmo: dividido entre aqueles que, pela sua riqueza, fazem-se lembrar e respeitar (acompanhados, a distâncias variáveis, pela turma do quase-lá) e os esquecidos, carregando nas costas seus próprios esquifes. Como o Haiti, logo ali.

Arquivo do blog