Entrevista:O Estado inteligente

domingo, fevereiro 19, 2006

DANIEL PIZA: Idílio à moda antiga

ESTADÃO

É divertido ver o comportamento das pessoas diante de um filme como Brokeback Mountain, de Ang Lee. Os homens se sentem desconfortáveis. Ao meu lado, no cinema do Shopping Higienópolis, havia um casal jovem e bonito. Quando pela segunda vez apareceu um dos atores nu, de lado, agachado diante do rio, ele disse para ela: "Ih, não tô curtindo esse filme." Antes do terço final eles já tinham ido embora. Uma amiga minha esteve numa sessão em que uns rapazes gritavam: "Vai com as ovelhas aí." Mas, em geral, o filme só tem colhido elogios, a bilheteria no Brasil está ótima e ele é forte candidato ao Oscar.

Como todos já sabem, conta a história de amor entre dois cowboys que se conhecem quando vão trabalhar num rancho de ovelhas no Wyoming, isolados de todos. Ambos têm boa aparência, são jovens e viris. A partir daí, vivem uma história que é em tudo e por tudo um exemplo acabado da convenção hollywoodiana, de seu sentimentalismo industrial. A aproximação segue a mais tradicional estrutura das histórias de amor: as primeiras reticências, os primeiros olhares, as primeiras risadas; então, o álibi quase inverossímil (uma cabana só para os dois numa noite de frio intenso); a resistência de um, a insistência do outro. Vem a primeira noite, depois os dias tomados pelas brincadeiras com música ao fundo. O idílio é reforçado pelas paisagens ao estilo Marlboro, bucólicas e grandiosas, segundo o clichê romântico. A narrativa avança lenta, e eles não brigam senão por causa dos outros.

Em outras palavras: eis uma história que você já viu milhares de vezes, com a diferença de não ser protagonizada por um casal hetero; o conflito viria de ser um adultério ou um romance inter-racial ou interclassista - e se desenvolveria da mesma forma, com final infeliz. Colegas comentaram comigo que o filme "realmente mostra" cenas de sexo e afeto entre dois homens. Bem, eu diria que mostra mais que a novela América, mas bem menos que um filme como Madame Satã... Até parece que é o primeiro filme gay feito no cinema. Argumenta-se que ele conseguiu emplacar em Hollywood de forma inédita, obviamente refletindo uma tendência geral dos últimos anos; e que o "preço" é evitar closes e delongas mais explícitos. Será? Ou fica tudo mais fácil quando se trabalha com a reversão do universo machista do western?

O que não se pode dizer é que seja um grande filme. Pense nas falas e atuações de outro dirigido por Ang Lee, Razão e Sensibilidade, adaptado de Jane Austen - a comparação não dá para a saída, ainda que Heath Ledger seja muito bom ator. Por sinal, é uma ironia que os dois filmes tenham tanto em comum, pois narram romances que enfrentam os preconceitos sociais. Um se passa mais de um século depois do outro. A civilização aprendeu a respeitar opções sexuais diversas, mas ainda encara o amor da maneira mais antiquada que existe.

RODAPÉ (1)

Há quase oito anos comentei o primeiro volume da biografia de Matisse por Hilary Spurling, jornalista e escritora inglesa. No final do ano passado, saiu o segundo e último: Matisse - The Master. É extraordinário. Aborda a vida e a obra do pintor francês de 1909 até a morte, em 1954, e derruba clichês sobre ele, comprovando mais uma vez como certas interpretações biográficas distorcem a importância de uma criação genial. O exemplo principal é a associação entre seu caráter recluso e sua pintura que seria "decorativa". Nem ele era o sujeito tranqüilo e alienado que se pensa, nem sua arte se basta na superfície e na facilidade. Spurling teve acesso inédito a todas as cartas de Matisse e família e descreve suas insônias e inseguranças, revelando como para ele a busca de "calma, luxo e voluptuosidade" era antes uma reação à realidade banal do que uma fuga. A narrativa não perde fluência com suas hábeis análises das telas. Vemos nitidamente como seus períodos no sul da Espanha e no Marrocos permitiram que encontrasse sua linguagem moderna na superação da perspectiva tradicional pelo uso da cor fluida e da ambientação circular.

RODAPÉ (2)

Finalmente sai por aqui a tradução - feita com proeza por Bárbara Heliodora - de A Linguagem de Shakespeare (Record), do grande crítico inglês Frank Kermode. Ele analisa o verso dramático de Shakespeare, sua combinação de coloquialidade e densidade, e lembra que o solilóquio é "fala no silêncio", ao comentar que nas últimas peças Shakespeare achou a medida certa entre eloqüência e sugestão. Naqueles poucos anos no início do século 17, Shakespeare fez uso de tantos recursos e registros lingüísticos, e com tal engenhosidade em suas "lufadas de associações oblíquas", em suas ambigüidades e audácias, que fundou nova etapa da consciência humana.

DE LA MUSIQUE (1)

Já estão disponíveis em CD os concertos que Kurt Masur e Roberto Minczuk regeram com a Orquestra Acadêmica de Campos do Jordão no Festival de Inverno do ano passado. A coragem de Masur em fazer Brahms e Mahler com a garotada é de uma grandeza que deveria servir de exemplo a alguns egocêntricos locais que não têm um centésimo de seu currículo - assim como a iniciativa de Minczuk de encomendar peças a brasileiros contemporâneos como Almeida Prado.

DE LA MUSIQUE (2)

Vejo um programa no Multishow em que um grupo de especialistas elegeu as dez melhores canções do Rolling Stones, que daria show em Copacabana ontem. Start me Up e Satisfaction, as duas de "riff" marcante, estão lá; e a mais triste de todas, Angie, também. Minha preferida é o "samba" Simpathy for the Devil justamente por ter o ritmo sanguíneo combinado com a melodia bonita, além da letra inteligente ("What's puzzling you/ is the nature of my game"), uma ironia aos modos formais e reprimidos da alta burguesia. Mas não há muito mais canções dos Beatles das quais podemos dizer o mesmo?

OS 'BRIGHTS'

Sobre as interseções entre cultura e biologia, escreve Daniel C. Dennett no site da revista Science & Technology News (www.stnews.org): "A cultura humana pode influenciar a base biológica ou genética do comportamento, e pode modular o ambiente seletivo de onde recebemos nossos genes. Mas também precisamos entender que a cultura humana é ela mesma um dos frutos da árvore da vida." Até aqui, tudo bem: é para essa direção que todas as pesquisas e os debates apontam cada vez mais, ao menos nos centros desenvolvidos. Mas Dennett vai além e escreve que a própria evolução e o design da cultura "devem ser explicados, em última instância, em termos biológicos" . Aqui já acho que há um excesso. O que significa explicar a cultura biologicamente? Vide Antonio Damásio, outro grande cientista escritor, que foi buscar em Espinosa outra terminologia para entender melhor os canais entre corpo e alma.

MINICONTO

Conheci um sujeito outro dia. Ele me deu um cartão de visitas onde constam nome, profissão, telefone comercial, telefone residencial, celular, site, blog, e-mail, msn e endereço no orkut. Perguntei se ele ia sempre ali, mas não me escutou. Estava com o iPod no ouvido.

POR QUE NÃO ME UFANO

Lula, na festa da reeleição organizada para comemorar 26 anos do PT, disse: "Pedir desculpas é uma grandeza. Sobretudo quando é por pouco." Comentários: 1) alguém por aí ouviu o pedido de desculpas do presidente?; 2) grandeza, no caso, não é só pedir desculpas, é esclarecer os erros para a Justiça; 3) o que o PT fez não foi pouco, e vale lembrar que fazer caixa 2 é, sim, roubar. Quanto aos comentários de que José Serra vai precisar explicar sua saída da Prefeitura, o que prometeu que não faria (até porque vai deixar a cidade na mão desse Kassab, do PFL), Lula também vai precisar explicar sua candidatura à reeleição, afinal sempre se disse contra ela.

A anemia pós-mensalão, aparentemente confirmada na pesquisa CNT/Sensus divulgada nesta semana, teve exceções, como a parceria de Tom Zé e Ana Carolina (que fez uma frase ótima: "Só de sacanagem, vamos ser mais honestos ainda") e algumas letras de funk. Mas não vi nenhum samba-enredo sobre o tema. Até fiz um refrão para sugerir:

"As estatais eram o sonho
Da tua revolução.
Pra roubar não foi preciso
Nem privatização."

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