Entrevista:O Estado inteligente

quinta-feira, junho 16, 2005

'Sou, mas quem não é?'

'

EDITORIAL
O Estado de S. Paulo
16/6/2005

E m dado momento do seu memorável show no Conselho de Ética da Câmara, o deputado Roberto Jefferson lembrou a fábula do sapo e do escorpião. Na versão jeffersoniana, este seria o PT, que não consegue contrariar a sua natureza e vai picando o sapo que o carrega até que ambos se afoguem no rio. Mas, antes por falta de alternativas do que por determinação biológica, o escolado político assumiu ele próprio, na realidade, o papel de escorpião que atribuiu àqueles que quer destruir no partido governante: o ministro da Casa Civil, José Dirceu, o presidente petista José Genoino, o secretário-geral Sílvio Pereira e o tesoureiro Delúbio Soares.
Sabendo ser quase certa a cassação do seu mandato pelo confessado envolvimento em esquemas de arrecadação de vultosas propinas nos Correios e no Instituto de Resseguros do Brasil - ao que acrescentou a admissão de crime eleitoral, por não ter declarado os R$ 4 milhões que, em nome do PTB, teria recebido do PT para cobrir custos da campanha de 2004 ("material de apoio", segundo Genoino) --, Jefferson decidiu levar consigo para o fundo todos quantos conseguir, não só os petistas, mas também os inimigos na cúpula do PL e do PP, a quem identificou como receptores e repassadores do "mensalão". Isso ficou claro já na primeira das entrevistas em que denunciou o suborno.

No Conselho, ele levou o plano adiante, com sucessivas afirmações que faziam lembrar o bordão do comediante Chico Anysio: "Eu sou, mas quem não é?" O resultado é um retrato de uma crueza talvez nunca antes vista do funcionamento de um sistema político marinado em corrupção. Sobrou para todos - até, como se verá, para o presidente Lula, embora Jefferson só tivesse para ele palavras boas. Esse é um sistema em que o tesoureiro de um partido se instala no palácio do governo para negociar o loteamento político do setor público, sem excluir posições que requerem conhecimentos especializados.

Esse é um sistema em que o mesmo tesoureiro, a crer no acusado convertido em acusador, se oferece ao presidente de um partido para "desencravar uma unha" - a paga de um fixo mensal de R$ 30 mil a membros da sua bancada para aprovar, sem criar caso, os projetos do governo. É ainda um sistema em que o mesmo presidente de partido reúne os seus deputados para saber se querem ter desencravadas as suas unhas. (Ninguém quis, segundo Jefferson.) E esse é um sistema em que "você não nomeia alguém para uma estatal sem a contrapartida de contribuição para o partido".

Ele falava de algo muito pior do que o dízimo que o PT cobra dos seus ocupantes de cargos de confiança, agora considerado "ilegal, imoral e inconstitucional" pela Justiça: a exigência de que os nomeados obtenham das empresas que transacionam com o Estado comissões, ou que nome se lhes dê, para o caixa 2 dos partidos, se não quiserem perder o cliente estatal. A julgar por Jefferson, o presidente Lula, um nefelibata como poucos, de nada sabia.

Jefferson insiste em que ele ficou abalado quando ouviu a história do "mensalão", no início do ano. Ou o presidente fingiu, ou a sua memória é falha. Pois, em maio de 2004, ouvira o mesmo, com citação de dois casos, do governador goiano Marconi Perillo - um episódio já confirmado por uma das personagens. De todo modo, para entender as árias do deputado (antes da sessão no Conselho de Ética, cantou What a Wonderful World, certamente prelibando o "triunfo" que ali obteria), há que separar as suas acusações dos motivos que alega para fazê-las. Estes, à parte a estratégia do escorpião, parecem destoar da verdade. Já aquelas ecoam verossimilhança - e comporão o libreto de tantas quantas CPIs se constituírem na sua esteira.

Como sairão dessa o governo, o ministro Dirceu e a direção do PT é uma questão em aberto. Mas, se tiver descortino e coragem de ousar, o presidente poderá desencadear no "pós-Jefferson" uma formidável mudança no deplorável comportamento do Executivo. Primeiro, decretando o fim imediato das suicidas "operações-abafa" dos escândalos sob investigação. Segundo, despolitizando as nomeações nos escalões superiores da administração e das estatais. Terceiro, trocando os materiais de construção da base parlamentar. Os congressistas que se dão ao respeito - e os há - não querem dinheiro por seus votos: querem ser parceiros das decisões de governo.

Nenhum comentário:

Arquivo do blog