Entrevista:O Estado inteligente

sábado, junho 18, 2005

Roberto Pompeu de Toledo:Roteiro da ópera, até agora

veja

Um guia dos itens fundamentais da peça
atualmente em cartaz no cenário político

Música – Cuore Ingrato. Escândalo político brasileiro que se preza precisa ter tema musical. O do governo Collor embalou-se ao som de Besame Mucho, o bolero dançado, rosto colado e ar de adolescentes apaixonados, pelo casal de ministros Zélia Cardoso de Mello e Bernardo Cabral. Não que o atual escândalo tenha atingido o patos do anterior – que ao romance entre ministros somou conflito fratricida, traições, mortes (Pedro e Leda Collor, Elma Farias) e até assassinato (PC Farias). Mas começou bem, com seu principal protagonista optando da janela por uma interpretação em que se adivinhavam amargura e promessa de vingança, soberba, ressentimento e desprezo. Besame Mucho flui em suave cadência e celebra momento de êxtase entre dois amantes. Cuore Ingrato, clássico da canzonetta napolitana, fere o grave tema da dor-de-cotovelo e exige cantoria a plenos pulmões. As duas cabem bem nos respectivos enredos – a primeira por irônico contraste com uma trama de tragédia e sangue, a segunda pela adequação sem rodeio a um drama de perfídia, ciúme e arrebatamento.

Vocabulário – "Mensalão" é a principal contribuição do atual episódio ao léxico político nacional. Podia ser "mesada", ou "mensalidade", mas desse modo não se adequaria ao gosto nacional pelo aumentativo. O "ão" está presente em estádios de futebol ("Mineirão"), estabelecimentos comerciais ("Ponto Frio Bonzão"), restaurantes ("Porcão"). Revela um fascínio em alguns casos pelo grande, em outros pelo escracho. No caso do mensalão, pelos dois. Outra contribuição vocabular do drama político em cartaz é o verbo "embarrigar". Significa um político assumir como sua, para despistar, nomeação para cargo público na verdade feita por outro. O político "embarrigado" desempenha para o parceiro o papel de barriga de aluguel. Terceira contribuição encontra-se no trecho do depoimento do deputado Roberto Jefferson ao Conselho de Ética da Câmara em que diz que o tesoureiro do PT, Delúbio Soares, ofereceu-se a ele para "desencravar uma unha". Desencravar uma unha! No contexto, a expressão equivale a "arrumar uns trocados" ou "descolar algum". As gírias, como se sabe, têm nas cadeias o local por excelência de seu florescimento. Nos escândalos políticos, elas se antecipam. São criadas antes de chegar – se é que chegam – à cadeia.

Locações – Gabinetes da Câmara, de ministérios e de estatais, mas também hotéis e apartamentos de deputados. Segundo a secretária Fernanda Karina Somaggio, seu ex-patrão, Marcos Valério Fernandes de Souza, acusado de ser um dos homens que entregavam dinheiro a deputados, encontrava-se com dirigentes do PT sempre em hotéis. Maksoud Plaza, em São Paulo, e Blue Tree, em Brasília, por exemplo. "Tudo na surdina", disse a secretária à revista IstoÉ Dinheiro. Encontros em hotéis revelam preferência por ambientes impessoais, por isso mais frios e profissionais. Mas o apartamento funcional do líder do PP na Câmara, José Janene, também era (é?) local de reuniões, o que revela tendência oposta para o aconchego e a familiaridade. Tantos deputados do PP o freqüentavam (freqüentam?) que o apartamento de Janene ganhou, entre eles, o apelido de "pensão". Uma das atrações era (é?) a comida excelente, produzida por uma cozinheira de escol. Mas, segundo o secretário-geral do mesmo partido, Benedito Domingos, ora em conflito com os companheiros, o apartamento de Janene era (é?) o local onde se distribuía o "mensalão". A crer nessa hipótese, a "pensão" pela qual os freqüentadores eram atraídos poderia ter outra acepção – não o de "espécie de hotel geralmente pequeno e de caráter familiar", mas o de "renda que se paga periodicamente a alguém", para recorrer às definições do Dicionário Houaiss.

Melhor ator – Roberto Jefferson é impressionante. O mesmo vozeirão que entoa Cuore Ingrato é capaz de virtuosísticas modulações para acentuar a denúncia e o choque, a galhofa e o assombro. A expressão da face cobre a inteira gama dos sentimentos humanos. E mesmo o corpo é mobilizado em momentos agudos, como quando disse que o presidente Lula tinha recebido uma "facada nas costas", com os desmandos dos assessores, e acompanhou as palavras com a contração dos braços sobre o peito, como se realmente golpeado por detrás. Mas... Bom ator? Jefferson é da escola de canastrões do Tribunal do Júri. Pauta-se pelo exagero e pelo grotesco. Seria mais um clown e um histrião que um ator. Ao gosto moderno, pode soar mais impressionante o ator que nem parece atuar. Por exemplo, o presidente do PT, José Genoino, ao afirmar que os relacionamentos de seu partido assentam-se em "pressupostos políticos e programáticos".

Fala inesquecível – Não se trata de peça de Shakespeare. Não se encontrará nela um monólogo sublime, um "Ser ou não ser..." Autores, enredo, protagonista – é tudo de segunda ordem, que fazer? Fica-se então com a frase dirigida por Jefferson ao chefe da Casa Civil, José Dirceu, em seu depoimento: "Zé, sai logo, senão vai fazer réu um homem inocente".

Nenhum comentário:

Arquivo do blog