Entrevista:O Estado inteligente

quinta-feira, junho 09, 2005

DEMÉTRIO MAGNOLI;Até tu, Brutus?

Folha de S Paulo
"No Brasil , a corrupção é sistêmica". O diagnóstico é do ministro Tarso Genro, quando ainda se contorcia para justificar a oposição do governo à CPI dos Correios. Verdades afirmadas com a pior das intenções não se tornam mentiras. Os escândalos dos Correios e do "mensalão" têm raízes no sistema de comércio político de cargos públicos e no financiamento clandestino de caixas de campanha que organiza as relações entre o Executivo, o Parlamento e os partidos no Brasil. A corrupção sistêmica, que representa um instrumento de privatização do Estado, opera em duas zonas distintas. No núcleo, onde pairam os "homens bons", oferece-se a chave do cofre dos grandes negócios entre o Estado e as empresas privadas. Na margem, onde circulam matutos espertos de ternos mal cortados, entra em cena a figura lendária do operador da mala preta.
O sistema tem longa história. Desde o governo Sarney, pulsa em sístoles e diástoles que guardam relação inversa com as dimensões da base parlamentar do Executivo. Contudo o ciclo "normal" aproxima-se do ponto de esgotamento em virtude do contraste entre os valores éticos que a opinião pública atribuía ao PT e a dinâmica real do comportamento do principal partido governista. O contraste solicita uma narrativa política: como explicar que, tão rápido, o "exército dos puros" tenha sido colonizado pelo tumor que se propaga nas instituições da República?
O poder corrompe, assevera o senso comum. Mas, no universo da política, a corrupção sistemática só se desenvolve como elemento consistente com um conjunto de concepções sobre o poder, o governo e a sociedade. Na tradição patrimonialista brasileira, a apropriação privada da riqueza pública não aparece como corrupção, pois a elite de proprietários identifica-se à própria nação, desconhecendo o conceito de cidadania. O PT não participa dessa tradição. No caso do governo Lula, as fontes doutrinárias da corrupção sistemática devem ser buscadas no pensamento político do seu núcleo dirigente.
Já parece um século, mas foi há poucos anos que Lula atirou contra os célebres "300 picaretas" do Congresso. Aquela frase incorporou-se à nossa história como um brado pela ética na política, mas essa interpretação rasteira oculta seu significado principal. Lula, hoje se sabe, enxerga a nação como uma grande família, na qual ele próprio ocupa o lugar de pai bondoso, provedor e clarividente. Os seus "300 picaretas" evidenciavam o desprezo que ele nutre pelo Parlamento, um poder esdrúxulo na "nação-família" e um estorvo às prerrogativas discricionárias do "presidente-pai". Essa interpretação esclarece a desenvoltura do seu governo nas operações de compra de lealdades parlamentares.
José Dirceu é fruto de uma estirpe diferente. Seu instinto e sua memória política recusam o princípio da separação entre o Estado e o partido, com o qual as circunstâncias históricas o obrigam a conviver. A tensão permanente entre convicção e realismo não o impediu de convocar dois altos burocratas petistas, o secretário-geral, Silvio Pereira, e o tesoureiro, Delúbio Soares, para cumprirem dupla jornada, atuando como operadores da distribuição de cargos públicos (e, talvez, algo mais) na chamada "base aliada".
Lula agora promete um choque ético e fala em cortar na própria carne. O diabo é que não há solução sem, antes, identificar os fundamentos do modo petista de corromper.

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