Entrevista:O Estado inteligente

quinta-feira, junho 09, 2005

CLÓVIS ROSSI:A corrupção da palavra

Folha de S Paulo
SÃO PAULO - Para começar, é de justiça endossar sem reservas a seguinte frase de Aécio Neves, o governador tucano de Minas Gerais: "O presidente tem uma história que merece o nosso respeito. O presidente Lula não é o presidente Collor".
Feita essa fundamental ressalva, é igualmente de justiça constatar que chama-se Luiz Inácio Lula da Silva o grande culpado por esse formidável imbróglio que faz com que seja um dos principais líderes da oposição a defender a honra daquele que pode ser seu adversário direto.
A corrupção de que se pode acusar Lula é de outra natureza, mas tão grave quanto o "mensalão", se existe ou existiu: é a corrupção da palavra, a corrupção das bandeiras.
Esse tipo de corrupção já transitou em julgado dois anos e meio após iniciado o governo Lula. É eloqüente, a respeito disso, o belíssimo texto publicado sábado nesta Folha de autoria do deputado Fernando Gabeira (ex-PT, de volta hoje ao PV):
"Enfrentamos cadeia, tortura e exílio e, de certa forma, sobrevivemos moralmente inteiros. A experiência do poder quebrou mais nossa vontade do que todos os paus-de-arara; os holofotes e o cordão de puxa-sacos nos confundiram mais do que choques elétricos. Amigos que enfrentaram horas de tortura para salvar os outros hoje se dedicam a produzir notinhas, uns contra os outros".
Preciso como bisturi, poético como poucos sabem ser.
No caso dos escândalos da hora, Lula levou 3,5 semanas para acordar e tomar, enfim, o caminho que qualquer governo decente (e inteligente) teria tomado 3,5 horas após a revista "Veja" ter começado a circular com a reportagem sobre os Correios.
Não que o discurso do presidente resolva alguma coisa à essa altura do jogo. Mas era o mínimo e o inteligente a fazer em vez de ficar tentando abafar a investigação.
No caso da corrupção da palavra, no entanto, é um caminho sem volta. E foi ela que pavimentou a estrada para o que veio depois.

FERNANDO GABEIRA

De volta ao apartamento de Roberto Jefferson
 
Quando Lula e Roberto Jefferson jantaram juntos, escrevi um relato descrevendo o que via nas fotos. Falei de quase tudo o que as fotos mostravam, a arara de cabeça baixa, as bolsas das mulheres deixadas no sofá.
Lembro-me de que Lula parecia não estar totalmente ali. Havia alguma coisa em sua pose, uma certa recusa, uma dúvida na expressão corporal. Os fatos posteriores arrastaram as hesitações e ele se mostrou solidário com Jefferson quando aconteceu o escândalo.
Se fosse escolher um bom cenário para contar em teatro a história desse sobressalto brasileiro, apontaria o apartamento de Jefferson. Ali houve o encontro em que Lula já flutuava na sua ambigüidade. De um lado, o corpo arredio; de outro, aquela frase: "Assino um cheque em branco e o entrego nas mãos de Jefferson".
Isso é muito comum no Lula. Em todos nós, para dizer a verdade. Quando algo hesita no fundo, compensamos com uma frase categórica, algo que esmague verbalmente a dúvida e nos permita a ilusão de liquidar o dilema.
O sentido do jantar era mostrar o quanto Lula confiava em Jefferson, como estavam próximos. Ali, no mesmo lugar, o apartamento de Jefferson, aconteceria o desfecho poucas semanas depois. Dois ministros imploravam, segundo as versões não desmentidas, a Jefferson que não envolvesse o governo nos inúmeros depoimentos que teria pela frente.
Nesse ponto, a falha do autor. Descrevi o jantar inicial, mencionei a arara, as bolsas, a hesitação corporal de Lula, as aulas de canto de Jefferson, sua interpretação de "Eu Sei que Vou te Amar". Foi como se o jantar se fizesse por si próprio e voasse para a mesa, como um pássaro do cerrado. Esqueci-me da empregada da casa de Roberto Jefferson.
No segundo ato, ela tem um papel decisivo. Abriu a porta para os dois ministros, que haviam tentado visitar Jefferson duas vezes em vão. Por que abriu se o patrão queria se isolar? Os historiadores do futuro vão desvendar esse detalhe ou, talvez, deixar que mergulhe no limbo como tantos outros.
Aqui em Brasília, todos se apresentam na portaria. Há duas vozes que ouvimos com freqüência: a dos vendedores de água mineral e de gás. Pode ser que ela tenha se enganado com isso. Talvez, ao ouvir a campainha, tenha usado o olho mágico, que, na verdade, aumenta o ângulo de visão, transformando levemente o rosto.
Com uma visão limitada das faces, pode ter pensado que um ministro fosse o vendedor de gás, e o outro, mais encorpado, de óculos e com o rosto redondo, fosse o próprio dono do caminhão. Só viriam juntos se houvesse alguma conta atrasada, algo que comprometesse sua administração doméstica. Deve ter aberto a porta simplesmente para que tudo ficasse esclarecido.
As pessoas pensam assim, mas nem sempre os governos o fazem. É, entretanto, incorreto concluir que os governos são menos inteligentes do que pessoas isoladas. O diabo com eles é que costumam se meter em situações tão estreitas, no sentido de perderem a margem de manobra, que são condenados a cometer um erro atrás do outro.
Essa idéia não é minha. A primeira vez que tive contato com ela foi nos livros de Isaac Deutcher sobre Trótski. Ele falava das situações históricas nas quais a margem de manobra se estreitava e os dirigentes de um governo, ou mesmo de uma classe social, mergulhavam numa inevitável seqüência de erros.
Lula talvez não imaginasse as conseqüências do jantar. Jefferson cantava um amor por toda a vida. "Em cada ausência tua, eu vou chorar,/ mas cada volta tua há de apagar / a dor que a tua ausência me causou". A lua de Brasília e talvez um conhaque os fizessem sentimentais.
Hoje vivemos um clima do tipo "Eu Sei o que Vocês Fizeram no Verão Passado". De um lado, acusações; de outro, tentativas de desfazer as pegadas, dissolver pistas. Para ser franco, entramos num túnel de onde sairemos vivos, mas alguns com cicatrizes em suas biografias.
A esperança dos que hoje se comportam como tropa de choque, que se recusam, ao contrário da empregada de Jefferson, a abrir a porta, é a de que o problema seja limitado aos políticos que, entregues a si próprios, sempre encontram os caminhos da conciliação.
Eles acham também que a popularidade do Lula é inesgotável e que, bem trabalhada pelos marqueteiros, pode suplantar todos esses problemas, do Waldomiro ao Jefferson, passando pela incompetência específica em governar.
Essa certeza de que tudo se vence com dinheiro, essa confiança cega em neutralizar a televisão, ampliar a clientela social e simplesmente ignorar os milhares de consciências que assistem a tudo, é um dado novo. Os amigos não estão perdidos; simplesmente passaram a acreditar que o bandido vence no final.
Enfrentamos cadeia, tortura e exílio e, de certa forma, sobrevivemos moralmente inteiros. A experiência do poder quebrou mais nossa vontade do que todos os paus-de-arara; os holofotes e o cordão de puxa-sacos nos confundiram mais do que choques elétricos. Amigos que enfrentaram horas de tortura para salvar os outros hoje se dedicam a produzir notinhas, uns contra os outros.
Tudo o que é sólido se desmancha no ar. Há dissoluções mais bonitas, passagens mais perfumadas. Esse episódio, mascarado de ascensão de um trabalhador ao governo, é uma crueldade histórica. Levarei muitos anos para justificar a mim mesmo como foi possível acreditar nisso, já no fim do século 20, quando experiência e prática nos incitavam a duvidar. Ignorantes da tragédia histórica, fomos condenados à farsa.

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