A lanterna de popa, localizada na parte de trás das embarcações, ilumina águas passadas. Parece dispensável aos leigos, mas tem muita valia para navegantes de mares e rios: contemplar obstáculos vencidos - um tronco à deriva, a ilhota quase invisível, qualquer perigo que o piloto não enxergou - ajuda a prevenir possíveis riscos pela proa.
Na semana passada, ficou evidente que a lanterna de popa, mais que útil, é indispensável a um Brasil transformado em nau dos insensatos por tripulantes incapazes de cavalgar um jet-ski. Acionada pelo Jornal do Brasil, a lanterna ilumina exemplarmente as águas de setembro de 2004. No meio das ondas que prenunciavam turbulências inquietantes, é possível identificar, surfando alegremente, João Paulo Cunha, o marujo que presidia a Câmara dos Deputados.
Naquele mês, ele ainda sonhava com a chance de permanecer no cargo mais dois anos. Convinha-lhe, portanto, estreitar laços e vínculos com parlamentares de todas as bancadas. Pareceu-lhe muito oportuno defender a Câmara de acusações passadas, presentes e futuras. Para um candidato à reeleição, voto de deputado não tem preço.
Tem sim, avisou o Jornal do Brasil na edição de 24 de setembro. Apoiado em declarações do deputado Miro Teixeira, endossadas pela senadora Heloísa Helena, o JB informou que numerosos integrantes da base governista recebiam R$ 30 mil por mês para aprovar projetos considerados relevantes pelo Palácio do Planalto. Estava instituído o "mensalão", sordidez ia escancarada, oito meses depois, pelo deputado Roberto Jefferson.
João Paulo sempre soube que muitos parlamentares trocam voto por dinheiro: anos antes, ele próprio afirmara que a emenda da reeleição presidencial, proposta pelo governo FH, fora aprovada graças a essa prática odiosa. Presidentes da Câmara são bem informados. Também por isso, é improvável que se tenha surpreendido ao ler no JB o nome do primeiro administrador da feira de votos: Waldomiro Diniz, principal assessor do ministro José Dirceu até flagrado protagonizando cenas de extorsão explícita.
Afastado Waldomiro, o controle do "mensalão" foi transferido para Delúbio Soares, tesoureiro do PT. São detalhes administrativos agora secundários. Voltemos a setembro de 2004. Voltemos ao homem que prometeu averiguar o caso "imediatamente e com rigor". As investigações duraram 12 dias. Em 6 de outubro, o raquítico inquérito foi arquivado pelo corregedor-geral da Câmara, Luiz Piauhylino, então no PTB.
O engavetamento foi facilitado pelo recuo de Miro Teixeira, que negou ter dito o que disse ao JB. João Paulo viu no desmentido mais que um bom motivo para liqüidar o assunto. Viu a chance do revide. Decidido a ampliar a popularidade entre seus pares, exigiu o direito de resposta, concedido na edição de 30 de outubro. O texto criticava, com palavras ásperas, "o constrangimento imposto a todos os 594 parlamentares".
Também prometeu punir o jornal com duas medidas judiciais. A primeira exigiria reparações por supostos danos morais causados à Câmara. A segunda trataria de enquadrar criminalmente o JB e os autores da reportagem. Até o momento, as ações permanecem no campo das bravatas. E lá ficarão.
João Paulo Cunha merece abrilhantar o desfile de depoentes organizado pela CPI destinada a esclarecer bandalheiras federais que incluem a mesada criminosa. Pode ser a CPI dos Correios, pode ser outra comissão. Tanto faz. O essencial é ouvi-lo sobre questões singelas. Quais deputados receberam mensalões? Quem pagava? A menos que prefira cometer perjúrio, João Paulo terá muita coisa a dizer.
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