Já que o País começa a respirar o clima eleitoral e a registrar as primeiras incursões de membros da Justiça no ordenamento das campanhas, um dito popular calha bem no momento: “Do ventre das mulheres, da cabeça de juiz e da boca das urnas nunca se sabe o que vai sair.” Se o provérbio parece arcaico, porque a evolução da ciência permite hoje saber de antemão o gênero do nascituro, busquemos outro: “Em cada cabeça, uma sentença.” Se alguém discorda deste, porque, apesar das diferenças entre seres e da percepção individual que têm sobre a vida, as pessoas adotam comportamentos muito semelhantes, saquemos um terceiro dito, da autoria de Montesquieu, pinçado de seu dossiê sobre o Espírito das Leis: “Uma coisa não é justa porque é lei, mas deve ser lei porque é justa.” Esta sentença se aplica à polêmica decisão do juiz-auxiliar da 1ª Zona Eleitoral de São Paulo, Francisco Carlos Shintate, que condenou a Folha de S.Paulo e a Editora Abril por terem veiculado entrevistas com a ex-ministra Marta Suplicy, pré-candidata à Prefeitura paulistana.
A decisão parece considerar apenas a primeira parte da lição do barão Montesquieu. O juiz alega que a entrevista exorbitou do interesse jornalístico e a liberdade de informação foi exercida de modo inadequado. E quando aos seus argumentos se junta o arrazoado de uma das promotoras de Justiça que assinaram a representação, Maria Amélia Nardy Pereira, forma-se um conjunto de esquisitices só explicável pelo fato de que, no País, a insegurança jurídica já não assombra. Que estranho: a mídia impressa pode dizer que um candidato gosta de música, de cachorro e de poesia, mas ele tem de calar o bico se o repórter lhe pergunta como vai melhorar o trânsito. O fait divers (algo pitoresco) pode, mas questões sérias, não. É risível. Certamente imbuída do espírito de seguir à risca a letra da lei, a autoridade não atentou para outro espírito, o da coletividade, que se sobrepõe ao individual. Uma coisa deve ser lei porque é justa, lembra o filósofo. Alguns aspectos merecem análise. A liberdade de imprensa e o direito da sociedade à informação ganham foro mais largo neste instante em que o eleitor começa a se inteirar das posições dos contendores do jogo político.
Tal necessidade se faz mais aguda em face da escalada de denúncias e ilicitudes que corroem a imagem de políticos, governantes e instituições. O painel dos descalabros amplifica a descrença de eleitores, tornando oceânica a distância entre eles e o sistema político. É evidente que um amplo processo informativo sobre os perfis que se habilitam aos governos municipais se encaixa na meta de apurar o senso crítico da população, com vista à melhor escolha das urnas. Se a democracia tem fundamento político e ético no direito de livre acesso à informação, é oportuno aduzir que essa hipótese assume, hoje, maior relevância. Não por acaso, o presidente do TSE, ministro Carlos Ayres Britto, e outros ministros do STF dão um puxão de orelhas nos juízes de primeira instância, alertando-os para que não ponham em risco o “direito fundamental à liberdade de informação”.
Além do juiz Shintate, promotores também se equivocam na leitura do artigo 36 da Lei Eleitoral, que proíbe a divulgação de propaganda antes do início da campanha, dia 6 de julho. Cabe distinguir propaganda de jornalismo. O que o magistrado parece não levar em conta é o fato de que um pré-candidato, entrevistado, não precisa submeter-se ao paralelismo entre vida pessoal e pensamento político. Não dá para castrar a semântica. O jornalismo desenvolve uma liturgia de perguntas e respostas. O juiz talvez tenha desprezado o fato de que a propaganda usa retórica persuasiva e estética diferenciada da forma jornalística, enquanto o jornalismo leva em conta a impessoalidade, o questionamento e a total liberdade do entrevistado para dizer o que pensa. Não se pode confundir defesa de pontos de vista com matérias pagas de propaganda.
Brande o juiz o argumento da igualdade dos candidatos ao pleito, na sugestão de que todos deveriam ganhar o mesmo espaço. Ora, outros pré-candidatos também ganharam espaços na Folha e na Veja. O Estado de S. Paulo, por sua vez, foi acionado pela Promotoria por conta da entrevista com o prefeito Kassab. Não houve quebra do princípio da isonomia. Ademais, o jornalismo tem regras. Candidatos com maior viabilidade eleitoral têm preferência na agenda do interesse público. Ora, nem o programa eleitoral concede tempo igual a candidatos, distribuindo as freqüências de acordo com a representatividade dos partidos. Como se pode ver, a lei eleitoral ganha interpretação restrita, desprezando a natureza das coisas, o anseio coletivo, a finalidade jornalística. Os juízes são acionados por promotores de Justiça, um grupo que inclui gente muito séria e alguns perfis atraídos por holofotes da mídia. A insegurança jurídica brota da polêmica que nasce nas fogueiras do Ministério Público (MP) e cresce nos espaços do Judiciário. Daí decorre um judicialismo que invade as fronteiras da política e afeta as relações de mercado, submetendo práticas e costumes de setores ao cipoal legislativo.
O Judiciário e o Ministério Público, justiça se faça, têm melhorado o desempenho, até porque desceram do altar da inacessibilidade para se aproximar da sociedade. Não se pode deixar de reconhecer o bem que o MP faz ao País quando estoura dutos de corrupção. Mas em certas áreas prima pelo exagero. Quanto aos juízes, falta a muitos a experiência vivida nos longos corredores dos tribunais. Os juízes jovens merecem todo o respeito; no entanto, parecem tocados mais pelo ímpeto do que pela sabedoria. Os corpos da Justiça e do MP precisam abrir os olhos para a dinâmica social e os avanços nas disciplinas humanas. A agitação de promotores é salutar para o expurgo das mazelas que mancham governantes e instituições. Mas precisam eles de vacina contra a autopromoção. E juiz deve se precaver para proferir sentenças que atendam ao espírito da lei e à alma da sociedade.
Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP e consultor político