sinopse
DANIEL PIZA, e-mail: daniel.piza@grupoestado.com.br Site: www.danielpiza.com.br
O que nós, brasileiros, procuramos no Japão vem da atração pelo oposto? É possível que sim, que a serenidade e a ordem que associamos a muitas de suas expressões seja uma compensação para nossa afobação e bagunça. Mas a própria maneira como os descendentes de japoneses se adaptaram ao Brasil faz pensar que talvez eles não sejam tão antípodas assim. Precisamos pôr mais nuances aí. E quem sabe concluir que o que escolhemos gostar na cultura japonesa não se deve a esse jogo binário de semelhança e contraste, pois o bom do ato de admiração é que ele pode ter sua lógica interna, sua razão inerente. Gostamos do que gostamos porque tais traços são em si admiráveis.
Sempre convivi muito com eles. Estudei em uma fundação japonesa, Centro Educacional Pioneiro, e depois numa escola onde eles eram numerosos, o Colégio Bandeirantes; tive muitos amigos (Dario, Fukushima, Ricardo) e uma namorada (Kuka) nisseis ou ionseis. Curiosamente, nesse período não gostava de sushi, apenas de sashimi, e era raro ir a restaurante japonês; hoje sou capaz de devorar em segundos uma dúzia de niguiris (sobretudo de atum “torô”). Um dos recantos de que gosto nesta caótica São Paulo é o Pavilhão Japonês, no parque do Ibirapuera, aonde hoje levo os filhos para alimentar as carpas.
Trouxe de Kyoto, em 2001, uma cópia em papel-arroz de uma estampa japonesa do século 18, mostrando um amigo visitando um poeta nas montanhas, que me entretém visualmente todos os dias na parede de casa. E nos últimos anos descobri, por exemplo, os prazeres de ler Kawabata, grande ficcionista de Kyoto, e de assistir aos filmes de Ozu, um cineasta que decupa as histórias com o cuidado com que um sushiman corta o peixe. Mas não acho que busque nesses prazeres um contraponto a meu modo de ser, mais expansivo e informal como o dos brasileiros em média; é minha própria inclinação para uma apreensão mais metódica do entorno que projeto ali.
Mais recentemente fui ver essa exposição que se encerra hoje na Pinacoteca do Estado, O Florescer das Cores - A Arte do Período Edo. É fascinante não só pelos objetos - quimonos, porcelanas, cerâmicas, espadas -, mas também porque nos põe a pensar sobre como a cultura japonesa partiu da matriz chinesa e desenvolveu estilos totalmente seus, que se distinguem pela delicadeza e economia, por uma recusa da opulência. O período Edo, de 1603 a 1868, foi de relativo isolamento do Japão, quando o xogunato fechou os portos e forjou com rigidez a unidade nacional; ao mesmo tempo, foi nele que se democratizaram a educação e as artes. É o período dos samurais e também do poeta de haicais Bashô, do autor de ukiyo-ê (estampa) Moronobu e do teatro kabuki.
Os belíssimos quimonos do tipo “kosode”, que representam a natureza em suas estações, com direito a muita simbologia, traduzem tanto a disciplina como a imaginação do período. Por sinal, tenho em casa um livro sobre a influência das estampas japonesas na pintura moderna, em especial a de Van Gogh, e o curioso é justamente ver como o intenso artista holandês se inspirou em sua combinação de forma e fundo para fazer de suas telas de cores vivas uma mistura de drama individual e escape lírico. Que haja um olhar contemplativo em Van Gogh devemos ao ukiyo-ê.
Já um romance que acabo de ler, Eu Sou Um Gato (editora Estação Liberdade), de Natsume Soseki (1867-1916), mostra outro Japão, aquele que já interage fortemente com a cultura ocidental, principalmente com a literatura inglesa, da qual foi professor em Tóquio. O livro, que tem um humor irônico (o que lhe valeu comparações inconsistentes com Machado de Assis, com quem só tem isso em comum), é escrito em primeira pessoa por um gato que, à maneira de Swift, descreve o comportamento dos humanos e encontra uma imbecilidade inexistente entre animais... Seu amo, Kushami, um professor medíocre, fala o tempo todo por meio de citações e chavões e jamais consegue coordenar desejo e realidade. Como tantos intelectuais, é incapaz de honestidade intelectual. Soseki não se encaixa na imagem dos japoneses como nacionalistas de pouco humor.
Isso vale para muitos outros aspectos. Se você acha que os japoneses são “recatados”, é porque não conhece a vasta cultura do erotismo que existe no país, como em mangás e na TV. Se você acha que sua arte é apenas realista, voltada especialmente à representação da natureza, assista a Contos da Lua Vaga, de Kenji Mizoguchi (coleção Lume Clássicos), de 1953, enfim em DVD no Brasil. O filme se passa no período feudal e parte de uma situação crível - a contraposição entre um homem que quer ser samurai e outro que quer ser comerciante durante uma guerra - e aos poucos vai se tornando fantástico, como numa história de Poe ou Conrad, a tal ponto que os personagens parecem como vultos a navegar sob a lua vaga.
Outro livro que acabo de saborear é Jun Sakamoto (editora Bei), um trabalho extraordinário de produção gráfica, com texto de Thomas Souto Corrêa e fotos de Cristiano Mascaro (e ainda um guia de Tóquio com dicas de Jun). É uma demonstração de como a culinária japonesa vai muito além da dupla sushi & sashimi e se abre às invenções de Jun com resultados memoráveis. Há muitos bons restaurantes japoneses em São Paulo, alguns também inventivos como o Aizomê; a maioria, porém, faz um trabalho convencional, em que se destacam os que trabalham com os melhores ingredientes. Jun faz combinações com produtos que vão da mousse de coco ao foie gras, mas ao final ressalta ainda mais o sabor original dos peixes, frutos do mar ou carnes. Parecendo tão longe da tradição japonesa, é na verdade quem está mais perto.
Quando estive lá, em cinco cidades (Tóquio, Yokohama, Osaka, Hiroshima e a preferida, Kyoto), voltei ainda mais nipófilo, encantado com a cortesia e o respeito que fazem parte do cotidiano daquela sociedade. Ela tem problemas - zonas obscuras de poder, alto índice de suicídio, dificuldade em ser tão boa no software como é no hardware -, como toda sociedade tem, mas tem qualidades que raras têm. Muitas pessoas parecem pensar que sushi é tudo igual, como saquê é tudo igual e... como japonês ou “japa” é tudo igual. Nem com mais cem anos vão perder esse preconceito. Azar delas.
CADERNOS DO CINEMA
Estou entre os primeiros admiradores brasileiros da série Sex and the City, que nas primeiras temporadas significou uma abertura comportamental ao mostrar mulheres falando com franqueza sobre assuntos como infidelidade, homossexualidade e prazer, não catalogando as mulheres em um único modelo ou em dois modelos opostos. Carrie era uma mistura de suas três amigas - sensual como Samantha, suave como Charlotte e séria como Miranda - e por meio delas conhecia a diversidade de Manhattan. Mesmo as cenas consumistas, como aquela famosa em que olha a vitrine de sapatos e diz “Hello, lovers”, só aumentavam o humor dos episódios, pois não se tratava de fingir que essa não é uma parte importante da vida de uma mulher contemporânea.
Mas com o passar das temporadas a moda e o consumo tomaram o primeiro plano, à medida que Carrie cada vez mais se preocupava em encontrar o príncipe encantado. O filme Sex and the City, em cartaz no mundo todo, é a expressão máxima disso. Há algumas falas engraçadas, em geral na base de trocadilhos, mas é curioso ver quatro mulheres que simbolizariam a independência pós-feminista falarem de homens o tempo todo. Li que o filme não passaria de um episódio de TV estendido, mas isso seria melhor; para virar um longa, enxertaram passagens como aquela pelo México, onde aparecem muitas das piadas preconceituosas. E os desfiles de marcas pontuam os quase 150 minutos em que vamos em direção à previsível reconciliação de Big e Carrie - com o detalhe de que Sarah Jessica Parker não é nenhuma Audrey Hepburn.
POR QUE NÃO ME UFANO
Tem coisas que não dá para entender. Agora é moda, por exemplo, desqualificar a pessoa que faz uma acusação ao governo, por mais plausível que seja, com a alegação de que ela tem interesse em se defender. E aí nada é investigado - como as suspeitas interferências de autoridades e ex-autoridades em negociações da Varig. Algo semelhante se pode ver na questão do Exército no Rio. Depois do escândalo da morte de três traficantes que foram entregues a outra facção por um tenente, no Morro da Providência, ainda há pessoas capazes de dizer que o problema não é esse, mas o domínio do Rio pelas gangues. Ora, que novidade! O foco agora é punir a arbitrariedade e criticar mais uma vez essa estratégia publicitária dos governos Lula e Cabral para proteger obras do PAC em vez de combater o tráfico e proteger o cidadão.
'A sociedade do Japão tem problemas, como todas têm, mas tem qualidades que raras têm!'
'Moda e consumo tomaram o primeiro plano à medida que Carrie procurava o príncipe encantado'
Aforismos sem juízo
Quanto mais detalhado o ideal, mais rápido ele se fragmenta.