BORIS FAUSTO
Ninguém ignora, como se costuma dizer, que, entre nós, todos são iguais perante a lei, mas uns são mais iguais do que outros
COMO BEM sabemos, a questão da violência e da criminalidade tornou-se central em nosso país, nos tempos atuais. Entre suas múltiplas dimensões, figura a controvérsia sobre a leniência das leis e a impunidade.
Para começar, por que a população acredita que "a polícia prende, mas a Justiça solta" ou que só os pobres vão para a cadeia, enquanto os mais privilegiados, quando muito, são atingidos apenas de raspão por uma breve perda da liberdade?
A percepção corrente tem muito a ver com os fatos, mas é preciso entender por que isso ocorre.
Em primeiro lugar, cabe lembrar que juízes e tribunais devem aplicar os princípios constitucionais, assegurando os direitos e as garantias fundamentais previstos na Constituição de 1988 -aliás, promulgada num clima da crença na ampla extensão de direitos, contrastando com os duros anos do regime militar.
A Constituição previu, em seu artigo 5º, inciso LVII, que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória. Esse preceito, ao lado de outros dispositivos, reforçou o princípio da excepcionalidade da chamada prisão processual -a prisão em flagrante, a provisória, a preventiva, a administrativa etc.
Contudo, nem tudo decorre das regras constitucionais, porque juízes e tribunais, majoritariamente, inclinam-se a interpretar as hipóteses da prisão processual como uma extrema excepcionalidade Veja-se o caso do acolhimento generalizado de pedidos de liberdade provisória no curso de investigações policiais ou pouco depois.
Convém ressalvar que essa medida tem um aspecto bastante positivo, ao permitir a liberação de réus pobres acusados de delitos de reduzida importância, com o que se tenta afastá-los das "escolas degradadas do crime" que são as nossas prisões. Mas a medida tem resultado também na soltura de "peixes graúdos" acusados de fraudes de todo tipo, os quais, defendidos por bons advogados, prolongam indefinidamente o julgamento final dos processos. Veja-se, também, num outro exemplo, a limitação do prazo da prisão preventiva a menos de dois meses, se não me equivoco, por interpretação fixada pelo STF.
A excepcionalidade da prisão processual encerra ainda um aspecto paradoxal quando se tem em conta a lei 5.941 de 22/11/1973 -"lei com fotografia", da época do regime militar, destinada a beneficiar o delegado Sérgio Fleury, notório torturador de presos políticos. Se a fotografia original desapareceu, a lei permaneceu em vigor, permitindo a réus condenados, preenchidos poucos requisitos, recorrer em liberdade até o trânsito em julgado (sentença irrecorrível) da decisão condenatória. Isso ocorre, quando ocorre, após a apreciação de inúmeras impugnações, diligências, recursos que atravessam os anos e até as décadas. Nesse longo intervalo, gozam de liberdade réus condenados por toda sorte de práticas delituosas, como homicídios com motivação torpe, peculato, corrupção etc.
Poderíamos multiplicar exemplos conducentes à impunidade, entre eles, a relutância de juízes e tribunais em enquadrar como crime doloso (com intencionalidade) a imensa maioria de motoristas que provocam desastres agindo irresponsavelmente, exceto durante a prática dos execráveis "rachas". A leniência decorre, quase sempre, da interpretação restritiva do artigo 18, inciso I, do Código Penal, que estabelece como crime doloso aquele praticado quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo.
Em plano diverso, veja-se ainda a soltura de condenados por crimes de natureza grave após o cumprimento de apenas um sexto da pena graças ao princípio da progressão.
Na base da impunidade, figura muitas vezes o problema da morosidade da Justiça e do emaranhado da legislação processual, fazendo com que os juízes relutem em manter na prisão por muito tempo pessoas que eventualmente venham a ser inocentadas. Porém, nem tudo decorre da morosidade da Justiça. É o caso de perguntar se, na interpretação das regras penais, juízes e tribunais não deveriam atentar para a realidade de nossos dias, para o clamor social, examinando as circunstâncias de cada caso, sem violar a lei, mas sem privilegiar os já privilegiados.
Afinal de contas, em matéria constitucional, não podemos tornar letra morta a regra do artigo 5º da Constituição Federal de 1988, segundo a qual todos são iguais perante a lei.
Ninguém ignora, como se costuma dizer, que, entre nós, todos são iguais perante a lei, mas uns são mais iguais do que outros.
BORIS FAUSTO, historiador, é presidente do Conselho Acadêmico do Gacint (Grupo de Conjuntura Internacional) da USP. É autor de, entre outras obras, "A Revolução de 30" (Companhia das Letras).