Entrevista:O Estado inteligente

sexta-feira, setembro 07, 2007

VEJA Entrevista: João Geraldo Piquet Carneiro


Menor e melhor

Com equilíbrio fiscal e arrecadação recorde,
chegou a hora de diminuir a burocracia


Cíntia Borsato

Ricardo Benicchio

"A herança ibérica já não explica o atraso brasileiro. Em Portugal e na Espanha, é possível abrir uma empresa em um dia"

O presidente Lula tem a oportunidade única de reverter a teia burocrática que transforma os brasileiros em súditos de um estado ineficiente e cartorial. Quem diz isso é o advogado João Geraldo Piquet Carneiro, 66 anos, talvez o único brasileiro a dedicar integralmente sua rotina à eliminação de uma das mais nefastas burocracias do mundo contemporâneo. Piquet preside o Instituto Helio Beltrão, uma organização cujo objetivo é propor iniciativas para ampliar a eficiência da administração pública e reduzir a interferência excessiva do governo na vida dos cidadãos e das empresas. Entre 1979 e 1986, Piquet foi braço-direito do advogado e economista Helio Beltrão no Programa Nacional de Desburocratização. Morto em 1997, Beltrão lamentava o renascimento de quase todas as exigências eliminadas à época de seu programa. Segundo Piquet, a arrecadação fiscal recorde dá agora ao governo a rara chance de simplificar a gestão pública. Piquet concedeu a seguinte entrevista a VEJA.

Veja – Por que o senhor considera possível reduzir a burocracia a curto prazo?
Piquet – Nunca houve momento tão favorável para isso na história recente do país. Nas últimas décadas, o grande álibi por trás do controle asfixiante dos cidadãos pelo estado foi a necessidade de elevar a arrecadação tributária e atacar a crise fiscal. Hoje, ao contrário, as contas públicas estão equilibradas. É a melhor hora para fazer uma mudança em favor do contribuinte. A menos, obviamente, que uma crise fiscal desabe e toda essa bonança financeira desapareça – o que certamente não está no radar. O governo ainda não percebeu que, se permitir a livre criação de riquezas, ganhará mais dinheiro, porque a base de contribuição dos tributos também crescerá. Da maneira como as coisas estão hoje, poucos conseguem estar em dia com todas as dívidas e normas tributárias. A resposta da sociedade vem na forma de aumento da informalidade. Quem permanece na legalidade acaba pagando mais impostos e lida com uma burocracia ainda maior e mais opressora.

Veja – Como se dá a relação de causa e efeito entre voracidade fiscal e burocracia?
Piquet – A Receita Federal precisa arrecadar cada vez mais e apertar as exigências impostas aos contribuintes para manter a receita tributária ascendente. Isso porque as despesas públicas aumentam ano sim e outro também. A produção em massa de legislações e normas tributárias é subproduto dessa voracidade arrecadatória. Criou-se a cultura da desconfiança. O poder público não confia no cidadão, que aceita isso e se torna submisso aos caprichos do estado. Uma relação de submissão na qual somos os súditos. Trata-se de uma mentalidade cartorial. Por que devo ir ao cartório, colocar um carimbo para provar que a cópia é igual ao original? Por causa de uma minoria de não mais que 5% de falsários, afeta-se a vida de 95% das pessoas. Por que devo obter certidões para provar que nada devo se quem me deve é o estado? O Congresso entra na onda, não consegue perceber que essa superestrutura fiscalizatória e de arrecadação requer mais funcionários públicos e mais gastos.

Veja – O que poderia ser feito de imediato para aliviar a burocracia no país?
Piquet – Várias coisas. Veja o absurdo das certidões emitidas por cartórios ou por repartições públicas para comprovar que as empresas e as pessoas estão em dia com o governo – ou seja, que elas não devem nada ao Fisco, ao INSS ou ao Ministério do Trabalho, por exemplo. Sem essas certidões, uma empresa não pode participar de concorrências e licitações nem assinar nenhum contrato com o governo. Sem esses documentos, uma pessoa não tem o direito de se inscrever para um concurso público. Nos anos 80, foi implementado o certificado de regularidade jurídico-fiscal, que unificava todas as certidões e valia por um ano. Isso retrocedeu. Hoje muitas delas valem apenas por um mês. Assim, pessoas e empresas se vêem obrigadas a emitir constantemente uma papelada para dizer que não devem nada ao estado. O governo mantém um mar de funcionários só para examinar esses papéis. Uma inutilidade que dá combustível à corrupção e pode desaparecer com uma simples canetada. Já há pessoas no governo pensando nisso. Seria uma medida fantástica.

Veja – E o receio da Receita de que isso eleve a inadimplência?
Piquet – É infundado. Com mais prazo, as empresas conseguem mais contratos, produzem mais riqueza e acumulam mais condições para pagar suas dívidas. Do jeito que está, é quase impossível manter-se em dia com o estado. Sempre se deve algo. Criou-se uma deformação que enrijeceu ao infinito a regularidade fiscal. A pessoa precisa viver 100% em estado virginal. Não pode ter nenhum pecadinho. Senão, vira um pária.

Veja – Quais seriam as outras iniciativas?
Piquet – É preciso proibir a exigência de firma reconhecida e da cópia autenticada em cartórios. Em qualquer país decente, basta que o funcionário público constate que a cópia confere com o original, e as assinaturas feitas na presença dos funcionários têm o mesmo valor da firma reconhecida. É preciso abolir isso o mais rápido possível. A nossa maior derrota, quando fizemos as reformas de desburocratização, ocorreu justamente quando propusemos a simplificação das escrituras para a compra de imóveis. Isso cria um enorme mercado de intermediação cartorial, uma das misérias da administração pública brasileira. Não conheço nenhum outro país no mundo com exigências semelhantes. Há profissões e até ramos de negócios que se criaram em torno disso. Poucos países têm tantos contabilistas e contadores como o Brasil – são 450 000 ao todo, contra 60 000 economistas, 250 000 administradores de empresas e 300 000 professores universitários.

Veja – A internet não simplificou essas exigências?
Piquet – Ao contrário, complicou em muitos aspectos. Ela vem sendo usada para apertar ainda mais o contribuinte. Com a informática, existe a fiscalização cruzada de vários tributos. O governo muitas vezes obriga o contribuinte a usar a internet, como se ela fosse um bem universal e de domínio de toda a população. Não é. Certas certidões da Receita Federal e da Previdência Social só podem ser pedidas pela internet. Mais uma vez, fez-se uma imposição autoritária, a serviço unicamente do controle da condição fiscal dos indivíduos. A internet, no Brasil, tem servido para incrementar e preservar a burocracia, não para reduzi-la.

Veja – Como nos tornamos líderes mundiais da burocracia?
Piquet – Há três momentos para entendermos esse fenômeno. O primeiro deles é histórico, argumento esse aliás usado muitas vezes para deixar as coisas como estão. Quando a família real portuguesa chegou ao Brasil, em 1808, desembarcou com a burocracia de sua corte na bagagem. A administração pública já nasceu, portanto, burocratizada. A segunda fase de aumento da burocracia ocorreu por causa da crise fiscal, a partir de meados dos anos 80. Com o avanço das despesas do setor público, a preocupação em arrecadar mais impostos foi tamanha que o atendimento ao cidadão deixou de ser importante. O cidadão, sobretudo aquele que caminha na legalidade, é punido duplamente: paga mais tributos e vê diminuir a qualidade do serviço público. O terceiro momento é aquele que vivemos hoje, que chamo de barroco burocrático. A cada dia são criadas leis e normas difíceis de cumprir, herméticas e passíveis de interpretações dúbias.

Veja – A herança ibérica tem tanta culpa assim?
Piquet – Não mais, pois Portugal e Espanha evoluíram muito. Nesses países, já é possível abrir uma empresa em um único dia, num processo todo informatizado, usando uma espécie de caixa eletrônico. Lá, as empresas recém-criadas só são fiscalizadas pela Receita depois de dois anos de atividade. Há um período de tolerância, para que o empreendimento se viabilize. O conceito é o seguinte: quanto mais negócios forem abertos, maior será a criação de riquezas para a sociedade e para o governo. No Brasil, com sorte, consegue-se abrir uma empresa em quinze dias, mas isso pode levar dois meses ou mais. O incrível é que regredimos. Nos anos 80, eram necessárias apenas 72 horas. O Brasil é o último remanescente de uma cultura centralizadora que funcionou bem por um período em Portugal, uma nação de dimensões territoriais pequenas. Os portugueses tentaram fazer o mesmo na administração do Brasil, mas isso é impraticável. A ironia é que hoje Portugal já está desburocratizado e o Brasil continua assim, como nos tempos em que o monarca autorizava a abertura de uma loja.

Veja – A carga tributária alcançou 35% do produto interno bruto (PIB). Até quando a sociedade suportará mais e mais impostos?
Piquet – Infelizmente, como a arrecadação sobe a cada ano, tem-se a impressão de que não chegamos a um limite. O que ocorre é que só permanecem na legalidade os poucos que ainda conseguem vencer as barreiras absurdas. Mas são poucos, se comparados ao resto da sociedade. Uma pesquisa realizada em 2003 pelo Instituto Helio Beltrão em cinco municípios do Rio de Janeiro mostrou que 70% das empresas eram informais. A carga tributária é tão alta que o contribuinte é expelido do sistema. Sem falar na própria burocracia, toda essa dificuldade para recolher os tributos devidos. Oito em cada dez empresas do país têm alguma pendência tributária. Se um pequeno empresário entrar em falência, o Fisco cobrará todos os impostos. Dificilmente esse microempresário conseguirá se reerguer, pelo menos não dentro da formalidade. Ele vai sair da atividade oficial, é a lógica do sistema, que trata um inadimplente e um sonegador de impostos da mesma forma. O barão de Mauá faliu duas vezes. Só conseguiu ser bem-sucedido e ficar rico em sua terceira tentativa. No Brasil de hoje, ele não passaria da primeira.

Veja – Dizem que a burocracia e a corrupção caminham lado a lado. O senhor concorda?
Piquet – Não tenha dúvida. Perante tantas e tão complexas exigências, as pessoas preferem contorná-las mediante algum artifício. Veja o caso de uma obra pública. As brechas para a corrupção começam no próprio edital de licitação. Aí vem a fiscalização da obra. A pessoa vai medir o projeto no meio da Floresta Amazônica e descobre que faltam 50 metros. Aparece aí outra oportunidade para o jeitinho. Depois vem a liberação do recurso, outro momento. Em um único processo há várias possibilidades e incentivos à corrupção. O governo não se autofiscaliza e não se deixa fiscalizar. Mas faz isso com o contribuinte, que não tem meios para fiscalizar o estado. A burocracia nesse sentido viola um direito intrínseco da cidadania. O cidadão tem direito de ser bem tratado. A burocracia se torna então perversa e antidemocrática.

Veja – Quase sempre se associa burocracia a órgãos públicos. Mas, com serviços como telemarketing e atendimento eletrônico, não estaríamos diante de uma nova fase de burocratização, desta vez no setor privado?
Piquet – Sim, mas, mais uma vez, boa parte da culpa cabe ao governo. A burocracia desses serviços decorre de deficiências regulatórias. Quando se pede o cancelamento de uma linha telefônica devido à morte do titular, algumas companhias exigem uma procuração assinada pelo falecido. Helio Beltrão dizia que, no Brasil, a certidão de óbito é mais importante que o defunto.

Veja – Vinte e cinco anos depois, que avaliação o senhor faz do Programa Nacional de Desburocratização? Ele fracassou?
Piquet – Algumas iniciativas fracassaram, como a simplificação das juntas comerciais. Regredimos em várias áreas, como no caso do processo de abertura de empresas. Mas outras medidas tiveram resultados positivos, como o Estatuto das Micro e Pequenas Empresas. O maior legado daquelas reformas, no entanto, foram os juizados de pequenas causas, que possibilitaram o acesso dos mais pobres à Justiça. O processo é completamente desburocratizado, não é necessária a apresentação de papéis, basta expor o problema oralmente. O serviço é gratuito e só há cobrança se houver recurso – justamente para desestimular o recurso. Esses exemplos comprovam que não precisamos viver sob essa burocracia autoritária. As reformas teriam um impacto positivo imediato na vida das pessoas. Ainda há tempo para virar esse jogo, e o momento ideal é agora.

Veja – Mas o governo brasileiro parece acreditar que as normas só serão cumpridas se houver a ameaça de alguma multa...
Piquet – Paciência. Gostaria de ver o burocrata sendo perseguido com o mesmo rigor com que persegue o contribuinte. Não sobreviveria um único dia.

Veja – Além de iniciativa política, o que mais seria necessário? Uma reforma tributária, por exemplo?
Piquet – Reforma tributária no Brasil é uma ilusão. Começa com as melhores intenções, acaba sempre em aumento de impostos. União, estados e municípios nunca perdem receita. As autoridades são movidas unicamente pelo desejo de conseguir uma arrecadação maior. Participei, por exemplo, da reforma tributária e fiscal do governo Itamar Franco. Nas primeiras reuniões ficou claro que o principal interesse era viabilizar o IPMF (imposto provisório sobre movimentação financeira). Pois bem, esse tributo, que era para ser provisório, está aí até hoje, na forma da CPMF (contribuição provisória sobre movimentação financeira), e deverá ser prorrogado até 2011. Uma eventual reforma poderá até trazer mais racionalidade à tributação e reduzir um pouco a burocracia. Não devemos nos iludir, no entanto, porque não haverá uma redução significativa da carga de impostos.

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