Entrevista:O Estado inteligente

terça-feira, setembro 04, 2007

Ritual de exorcismo no PT

Conta-se que certa vez, durante o regime militar, Tancredo Neves pediu ao seu companheiro de MDB Ulysses Guimarães que redigisse um manifesto condenando uma enormidade qualquer cometida pelo general-presidente de turno. Quando ficaram a sós, um assessor de Tancredo observou, inquieto: "Mas o Ulysses vai escrever um texto incendiário." Ao que o moderado político mineiro retrucou: "Não se preocupe. Depois eu elimino as passagens mais fortes. Já se eu fosse o autor, ele é que iria apimentar o texto." A anedota ajuda a entender por que, no 3º Congresso do PT, o presidente Lula chamou a si a condução do ritual de exorcismo do envolvimento da cúpula do partido com o mensalão, no seu primeiro mandato.

Em outras bocas, há de ter raciocinado, a defesa dos companheiros promovidos a réus no processo dos 40, aberto semana passada no Supremo Tribunal Federal (STF), poderia transbordar das medidas, incluindo, quem sabe, ataques aos juízes que votaram, em especial, pela pronúncia do ex-ministro José Dirceu por formação de quadrilha e corrupção ativa. No calor da hora, um orador mais exaltado poderia invocar a "faca no pescoço" com que os ministros teriam deliberado, como disse um deles, Ricardo Lewandowski, para depois se retratar. Tanto que Lula decidiu à última hora guardar-se de comparecer à abertura do evento, na sexta-feira, quando faria o intransferível discurso de honra da noite.

Irritado ao saber dos planos para uma manifestação de desagravo a Dirceu e ao ex-presidente da agremiação José Genoino, dois dos oito petistas processados, sem contar o expulso Delúbio Soares, Lula se ausentou para que não pairasse a menor dúvida sobre a sua contrariedade com a iniciativa. Mensagem recebida, compareceu no dia seguinte para monopolizar - e esgotar - o assunto. Só aparentemente falou de improviso: tudo, as palavras, a veemência, a expressão corporal, foi estudado para entusiasmar, dentro dos limites de suas conveniências, a platéia companheira que ainda hoje ele sabe hipnotizar como ninguém. Isso explica o sentido "morde-e-assopra" de sua locução.

De um lado, como se nada do que foi denunciado nesses dois anos tivesse acontecido, retomou a balela da pretensa superioridade ética do petismo. "Ninguém neste país tem mais autoridade moral, ética e política que o PT", bradou, calculadamente, com expressão de indignação na face e o indicador em riste. "Nenhum petista tem que ter vergonha de defender um companheiro." E arrematou: "Admito que tenha gente igual a nós; melhor não tem." De outro lado, não menos espertamente, lembrou que "nenhum deles foi inocentado, mas também nenhum deles foi culpado". E reiterou seu cósmico distanciamento dos atos daqueles que o teriam traído, segundo sua inesquecível "explicação". "Somente esses companheiros - nem eu nem vocês - sabem o que aconteceu." Justiça se lhe faça, o homem é um artista.

Virada, ao gosto de Lula, a página do mensalão, o terceiro conclave do gênero em duas décadas de história petista deixou claro que o partido só pensa naquilo - manter-se no poder. Que fazer com ele, como avançar no trato dos problemas nacionais, disso mal se falou, descontadas, notadamente, a irrelevância do plebiscito sobre a privatização da Vale do Rio Doce e a ameaça contida na resolução que exorta o governo a "atacar de frente o oligopólio privado (da mídia eletrônica), com estímulo à criação de novos veículos". E, em matéria eleitoral, a tensão entre o PT e Lula é mais do que latente. O partido está de olhos postos em 2010, quando viverá a inédita situação de não ter o seu nume tutelar candidato ao Planalto. Não digere, porém, a idéia de ficar sem alternativa própria.

Lula, por sua vez, só enxerga 2010 em função de 2014, quando imagina que poderá assumir a Presidência pela terceira vez. A condição necessária - mas obviamente insuficiente - para isso é transformar a sua atual coligação de governo numa coligação eleitoral, o que pode levar à escolha de um não petista para cabeça-de-chapa no próximo pleito, com Lula no papel de seu palanqueiro-mor. Não foi sem querer que ele citou Ciro Gomes, do PSB, e Nelson Jobim, do PMDB, como presidenciáveis. Mas decerto foi sem querer que o presidente falou aos petistas de sua laborfobia, ao confessar que, quando deixar a Presidência, fará "a única coisa que sei e gosto de fazer", que é "continuar viajando pelo Brasil".

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