Entrevista:O Estado inteligente

terça-feira, setembro 11, 2007

Os blindados


Norman Gall

Para os que ainda relutavam em admitir a existência do mensalão, o Supremo Tribunal Federal (STF) mandou um singelo recado: sim, o mensalão existiu. Todos os seus operadores, inclusive o mentor da quadrilha, tornaram-se réus. Enquanto o governo e o Congresso tentam se defender no terreno movediço da ética, o debate político começa a entrar numa nova fase: sobre a eficácia do lulismo aos desarranjos na economia mundial.

No 3º Congresso Nacional do PT, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva ousou dizer a seus súditos que o PT é o mais ético dos partidos. "Não tem do que se envergonhar", frisou, agradando seus seguidores. Outra vez sobrou para a imprensa a culpa pelos desarranjos. José Dirceu falou em "ditadura da mídia". Junto com sua panela, tenta vender a idéia de que tudo não passa de uma conspiração orquestrada pela oposição, em conchavo com a infame elite e difundida pela mídia.

Desde sua vitória avassaladora na eleição de outubro de 2006, o inimigo oculto de Lula tem sido a soberba. Essa soberba contrasta com a sabedoria de Lula em assumir a Presidência em 2003, reconhecendo que o povo brasileiro não aceitaria uma volta à inflação crônica. A panela de Lula agora assegura que o Brasil, com US$ 160 bilhões de reservas, está "blindado" contra o impacto de uma crise financeira mundial, como está acontecendo hoje nos mercados de ações e crédito, seqüela da bolha especulativa no mercado imobiliário nos Estados Unidos.

Nesses dias o Brasil parece voando em céu de brigadeiro. Na reunião em Basiléia dos presidentes dos principais bancos centrais do mundo, Henrique Meirelles dizia: "O Brasil é considerado como uma das fontes de estabilidade no momento." Visitando a Finlândia, Lula dizia no mesmo dia: "É um problema da política econômica americana, da ganância de alguns investidores que compraram títulos de risco imaginando que estavam num cassino e tiveram prejuízo. Não vamos aceitar que joguem nas nossas costas o prejuízo de um jogo que não jogamos. Se o lucro não foi repartido, muito menos queremos repartir o prejuízo."

Mas o lucro, sim, foi repartido. O Brasil foi beneficiado pela grande expansão de liquidez no mundo, permitindo sua grande acumulação de reservas. O rápido crescimento da economia mundial sustentou as modestas taxas de crescimento brasileiro nessa década.

O que complica o Brasil neste momento é o aumento temerário de gastos públicos desde a campanha eleitoral de 2006 para cá, especialmente em gastos com pessoal, que impõe ao governo maiores compromissos fiscais permanentes, protegidos pela Constituição, enquanto a economia mundial irradia incertezas sobre seu futuro crescimento, do qual o crescimento brasileiro depende. Até agora, o governo de Lula podia sustentar os novos gastos com aumentos espetaculares em tributação. Seria racional prever uma queda ou estagnação na renda do governo se o recente ciclo de crescimento acabar, deixando o Brasil com maiores compromissos fiscais fixos, minados com menor tributação. Nesse caso, com a política monetária atrelada à política fiscal, o governo teria poucas alternativas senão tentar diluir seus compromissos fiscais com medidas inflacionárias. Com o mesmo mecanismo operando, uma queda de tributação, conseqüência do colapso da bolha imobiliária nos Estados Unidos, já provocou crise fiscal em vários Estados norte-americanos.

Vista assim, a conjuntura brasileira atual põe em risco não só um ciclo de crescimento, mas também um ciclo de estabilidade democrática duramente conquistada desde 1985. No meio de sucessivas crises, desde o mensalão até a confusão e o desastre na aviação civil, Lula costuma acusar as críticas feitas ao governo de ataques à democracia, invocando fantasmas de conspirações das elites. Ante essa conjuntura, o que seria a resposta da sociedade civil? Por isso perguntamos: onde está a oposição?

Perdida está após a derrota de Geraldo Alckmin, que no segundo turno recebeu 2,4 milhões de votos a menos do que no primeiro, uma façanha inédita que exigia muita criatividade e persistência para se realizar. Os líderes do PSDB erraram em acreditar que, após tantas vergonhas acumuladas em seu primeiro mandato, Lula cairia sozinho da Presidência nas eleições do ano passado. A iniciativa dos caciques do DEM (ex-PFL) de passar o bastão a lideranças mais jovens foi o único grande passo na direção da reconstrução da oposição. Já os tucanos, seus ex-parceiros de governo, continuam paralisados. Remetem aos velhos refrões das denúncias contra os pecados do PT, em lugar de se mobilizar para a caça de novos talentos em todo o País, para revigorar um partido com raízes na classe média e profissional que agora carece de representação coerente.

Preenchendo esse vazio institucional, nosso desacreditado Judiciário decidiu não ser possível esconder os fatos. O ministro Joaquim Barbosa, nomeado por Lula à Corte Suprema, foi o grande protagonista do julgamento. Pode ter assumido um papel histórico parecido ao do juiz federal John Sirica, filho de pobres imigrantes italianos, que, em 1973, provocou o desenlace do escândalo Watergate, exigindo ao então presidente norte-americano Richard Nixon a entrega das fitas gravadas com conversações íntimas da Casa Branca. Um negro de origem pobre, com jeito simples e ponderado de falar, Barbosa demonstra ser um exemplo digno a ser seguido pelos menos favorecidos. Ele prova que pobreza ou a cor da pele não impedem o indivíduo de aprimorar-se continuamente, como fazem com coragem milhões de jovens brasileiros que estudam à noite em condições péssimas. Eles precisam agir como podem, porque não estão blindados contra o vazio institucional nem contra os vaivéns da economia mundial.

Norman Gall é diretor-executivo do Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial.
E-mail: ngall@braudel.org.br

Arquivo do blog