Entrevista:O Estado inteligente

segunda-feira, setembro 17, 2007

O governo, o PT e a propriedade



artigo - Denis Lerrer Rosenfield
O Estado de S. Paulo
17/9/2007

Fantasmas existem. Às vezes, atacam. Não basta afugentá-los com feitiçaria, pois possuem uma prodigiosa capacidade mutante, apresentando-se de múltiplas maneiras. Fica difícil, muitas vezes, localizá-los. Esforços, no entanto, devem ser feitos, pois deles dependem um sono e um futuro tranqüilos.

O PT deu mostras, em seu congresso, de coerência em relação às suas posições históricas, fazendo reviver os fantasmas de uma sociedade socialista, tendo a Cuba de Fidel Castro (e Che Guevara) e a Venezuela de Hugo Chávez como modelos. Quando alguns poderiam prever uma revisão de posições doutrinárias, que as adequassem à prática “neoliberal” conduzida pelo governo petista na área da política econômica, o movimento ideológico empreendido foi o contrário, condenando essa mesma prática e propugnando por uma relativização, crescente, da propriedade privada. É evidente que há uma contradição entre posições partidárias e certas práticas governamentais, que não esgotam, contudo, o problema, pois há algo muito mais importante em jogo. Não se trata de mera esquizofrenia, mas de um ensaio premeditado de insensatez, produto de devaneios ideológicos não superados.

O PT deu mostras de sintonia, e não somente de dissintonia, com seu governo. Se tanto insistiu no socialismo enquanto seu alvo próprio, é porque acredita que esse é o caminho a ser trilhado e, diria, já o está sendo. A pergunta que deveria ser colocada é, então, a seguinte: onde ela estaria ocorrendo e como conciliá-la com suas mesmas práticas “neoliberais”. Deixemos a questão da conciliação para psicanalistas petistas, que, juntamente com o seu partido, estão no divã - e sem atendimento! O problema é outro. A chave encontra-se em declarações de líderes partidários e em documentos segundo os quais o partido deveria reaproximar-se dos movimentos sociais. Se fossem totalmente honestos, deveriam dizer que os movimentos sociais deveriam adentrar mais profundamente nos órgãos do Estado, tais como o Ministério do Desenvolvimento Agrário (Incra e Ouvidoria Agrária Nacional), a Funai e o Ministério do Meio Ambiente (Ibama).

Os movimentos sociais, juntamente com a maior parte das tendências petistas, estão empreendendo um forte processo de relativização da propriedade privada. Enquanto a atenção está centrada no mercado financeiro, eles se movem resolutamente em ações que visam a desrespeitar a propriedade e os contratos, fazendo valer as suas posições anticapitalistas, enfraquecendo as instituições representativas. São basicamente quatro as relativizações em curso da propriedade privada, que se apresentam - e se travestem - em suas funções sociais, raciais, indígenas e ambientais.

A função social da propriedade é a que se manifesta de forma mais clara, pelas ações violentas do MST, da Comissão Pastoral da Terra (CPT), do MLST e, agora, do incremento das ações do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) e da Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar da Região Sul do Brasil (Fetraf-Sul)/CUT. O seu alvo é a destruição, várias vezes reiterada, do agronegócio e da propriedade no campo brasileiro. Não se trata, senão aparentemente, da luta contra o “latifúndio”, mas da luta contra os princípios mesmos de uma economia de mercado e da democracia representativa. Che Guevara é o seu ícone. Ligeiramente abaixo, comparecem os ditadores Hugo Chávez e Fidel Castro. São os santos da Nova Igreja.

A função racial da propriedade se apresenta sob a forma de ações quilombolas. Sob o pretexto de regulamentar um justo artigo da Constituição de 1988, o que dispõe sobre os quilombos existentes até então, o que implica posse e continuidade de ocupação territorial, o atual presidente, respondendo aos projetos de seu partido e dos movimentos sociais, publicou um decreto que altera o sentido mesmo da palavra quilombo. Ela passa a significar qualquer comunidade cultural negra. O seu instrumento jurídico consiste nos dispositivos da “autoclassificação” da cor e da “auto-identificação” das terras rurais e urbanas. Sob esta ótica, “remanescente quilombola” significa “descendente de escravo negro”. Alguns antropólogos e procuradores engajados na “causa” chamam tal operação de “translação semântica”, num procedimento político capaz de fazer corar os mais impenitentes stalinistas. E isso que estes eram mestres na manipulação da linguagem. Órgãos de Estado como a Fundação Palmares e o Incra seguem por essa trilha, que se está tornando uma autopista.

A função indígena da propriedade se manifesta nesta proliferação inaudita de demarcações do território nacional que começa a fugir do controle da autoridade estatal. Já são mais de 100 milhões de hectares demarcados. Ante os agentes da Funai - e do Conselho Missionária Indigenista (Cimi) - e os “laudos” utilizados, qualquer título de propriedade desaparece, deixando os agricultores completamente indefesos. Uma causa justa de demarcação de territórios indígenas para a preservação de laços culturais está se tornando objeto de instrumentalização ideológica e partidária, com repercussões internacionais.

A função ambiental da propriedade é outra causa, justa, que está sendo desvirtuada. Aproveitando-se de uma consciência politicamente correta, vigente em amplos setores da juventude, grupos ecossocialistas têm sido hábeis em fazer passar a sua mensagem. Assim, criou-se, por exemplo, uma ficção, a do “deserto verde”, ostentada pelo MST e pela Via Campesina, que é empregada para ações de destruição de propriedades.

O Brasil deve ter consciência de que para crescer, distribuir riquezas e preservar as liberdades é necessário impedir que esse processo de relativização da propriedade privada ganhe a figura de um fantasma que passe a orientar a vida de todos. E ele está se tornando perigosamente concreto!


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