Aula prática
Dentre as muitas manipulações que o senador Renan Calheiros protagonizou nesses quase quatro meses de agonia política, duas se destacam como fundamentais para sua absolvição na votação secreta pelo Senado: transformou uma discussão de quebra do decoro parlamentar numa disputa governo-oposição, e, como ele mesmo confessou, “por falta de opção”, transformou-se em um exemplar espécime do maquiavelismo, demonstrando “capacidade política” insuspeitada, aquela chama que Maquiavel identificava como “virtude”, que, como muito bem lembra Norberto Bobbio, “nada tem a ver com a virtude da qual se fala nos tratados de moral”.
O que se viu nesses meses no Senado foi uma aula prática de ciência política, dada por professores que, na maioria das vezes, têm apenas o conhecimento intuitivo dessa ciência. Ao identificar na campanha de que se dizia vítima nada além de uma continuidade da luta oposicionista para derrotar o governo, uma seqüela da vitória na campanha presidencial do ano passado, Renan Calheiros conseguiu unir em torno de suas falcatruas pessoais o sentimento de companheirismo do governo Lula.
Quando o senador Aloizio Mercadante, para demonstrar que o PT não foi incoerente na defesa de Renan, alega que o partido em nenhum momento se colocou contra ele, está, ao contrário, mostrando como os petistas não têm mais nenhum compromisso com a ética na política, mas apenas com a manutenção do poder. Intuitivamente ou não, Renan Calheiros adotou desde o início de seu processo a teoria do cientista político alemão Carl Schmitt, que definia a política como uma relação “amigo-amigo”, isto é, a atividade política consistiria em “agregar e defender os amigos e desagregar e combater os inimigos”.
A visão da política como uma guerra predomina na visão petista ainda influenciada pelo estilo de liderança do ex-ministro José Dirceu, que definiu o PSDB como “o inimigo” e sempre trabalhou para que essa distinção presidisse as ações do partido, não dando margem a tentativa de aproximações. Ainda hoje, para afastar a possibilidade de uma negociação entre o PT e o governador de Minas, Dirceu não perde a oportunidade de dizer que Aécio Neves é um bom candidato “para o PSDB”.
O sociólogo Julien Freund aprofundou a tese de Schmitt, acrescentando: “Quanto mais uma oposição se desenvolve em direção à distinção amigo-inimigo, mais se torna política”. A “virtude” ou “capacidade política” que Renan demonstrou nesses meses de resistência voltaram a dar sinais agora, quando parte do próprio governo faz pressão para que se licencie, permitindo assim as negociações para a aprovação da prorrogação da CPMF — que rende cerca de R$ 40 bi — e a DRU, desvinculação dos recursos da União, que permite ao governo usar 20% da receita tributária para distribuir entre os programas que julgar prioritários.
São dois instrumentos imprescindíveis para a manutenção da gestão pública da maneira como está montada.
Sem eles, o governo teria que se reorganizar todo, começando por cortar na carne os gastos públicos. Na teoria, seria uma grande oportunidade para a oposição obrigar o governo a reduzir seu tamanho e, ao mesmo tempo, proporcionar ao país um alívio na carga tributária. Na prática, há a pressão dos governos estaduais, que em vez de acabar com o imposto querem um pedaço dele. E há a questão de longo prazo, que é retirar de um eventual futuro governo oposicionista uma arrecadação formidável.
O governo sabe que o movimento de obstrução organizado por seis partidos no Senado tem mais o objetivo de retirar o senador Renan Calheiros da presidência da Casa, para que não interfira nos próximos processos a que responderá, do que propriamente criar embaraços para a aprovação da CPMF. O máximo que a oposição quer é forçar uma negociação para a redução gradativa do imposto, o que parece ser a posição mais sensata, aliás, pois daria tempo para o governo se reorganizar sem colocar em risco o equilíbrio fiscal.
O governo sabe disso e força a sua base aliada na Câmara a aprovar a emenda constitucional sem nenhuma alteração, deixando para negociar a redução no Senado, onde lhe faltam pelo menos três votos para obter o quorum necessário à mudança da Constituição. É por isso que o governo está empenhado em afastar Renan da presidência através de uma licença até o fim do ano, prazo final para a aprovação da CPMF.
Na verdade, o prazo legal termina este mês, mas já existem interpretações de que, como seria uma prorrogação, mesmo havendo uma nova emenda constitucional para ser aprovada, ela não precisaria respeitar o prazo de três meses antes de entrar em vigor. Se se transformar em um obstáculo intransponível às negociações, Renan pode deixar de ser o “amigo” que merece todo o apoio do governo.
Nessa segunda etapa das negociações, estará em jogo o fim da votação secreta no Senado. Renan Calheiros certamente teme ser julgado por seus pares fora da presidência e com voto aberto. O governo pode garantir os votos necessários para não realizar essa mudança constitucional, desde que Renan ajude com sua ausência a aprovação da CPMF e da DRU, deixando em seu lugar o petista Tião Vianna. Mas a oposição também pode negociar a cabeça de Renan em troca da aprovação da CPMF.
De qualquer maneira, o governo “público em público” de que fala Bobbio, esbarra nas deficiências institucionais de nossa democracia. A escolha de ministros do Supremo, de embaixadores, a decisão sobre vetos presidenciais, se forem abertas, submeterão os parlamentares a pressões indevidas, eles que, ao contrário dos ministros do Supremo, não têm mandatos vitalícios e podem ser julgados por um juiz em quem não votaram. Seria o ideal também que a eleição para a presidência das duas Casas fosse aberta, mas existe a possibilidade de o Executivo pressionar o Legislativo.
Entrevista:O Estado inteligente
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