Especial
A decisão histórica do STF fortalece a fragílima Justiça
brasileira e pode ser um marco na recuperação da força
das instituições. Os EUA vivem um momento diferente
Marcio Aith
Há séculos os estudiosos tentam entender os motivos que levam algumas sociedades a evoluir mais rápido que outras. Só recentemente ficou patente que, além da liberdade, outros fatores intangíveis são essenciais ao desenvolvimento das nações. O principal deles é a capacidade de as sociedades criarem regras de conduta que, caso desrespeitadas, sejam implacavelmente seguidas de sanções. A solidificação científica dessa descoberta no campo da economia pode ser creditada ao americano Douglass North, ganhador do Prêmio Nobel de 1993. Sob essa ótica, a decisão do STF de abrir processo criminal contra os "40 do mensalão" pode ser o início de um círculo virtuoso na vida das instituições brasileiras. O que os mensaleiros têm a ver com economia, com as instituições e com o desenvolvimento do país? Tudo, pois a praga da impunidade, enfrentada com coragem pelos ministros do Supremo, tem só o cérebro na política. Seus braços estão na economia, suas pernas, na segurança pública, e seus pés, na cabeça daqueles que crêem na democracia.
Reuters |
SAI O FILÓSOFO DA TORTURA Autor do memorando que autorizou interrogatórios "duros" na prisão de Guantánamo, o secretário de Justiça dos EUA, Alberto Gonzales, renuncia. Assim se regeneram as instituições americanas |
Como diz o cientista político americano Stuart Gilman, chefe do Programa Global da ONU contra a Corrupção, se a impunidade não é controlada, destrói-se a confiança da população nas instituições. Em última instância, segundo ele, isso abre caminho para regimes autoritários porque, em um cenário de falência das instituições democráticas, as pessoas podem se deixar levar pela ilusão de que a corrupção está ligada à democracia – daí serem comuns golpes militares que usam a roubalheira civil como estratégia de obtenção de apoio popular. É por isso que a impunidade acaba levando à destruição do maior ativo numa democracia: a crença nas instituições. No caso do mensalão, estão no banco dos réus os diretores de duas agências de publicidade e de dois bancos que, no conjunto, fraudaram licitações, superfaturaram contratos públicos, lavaram dinheiro e receberam informações privilegiadas sobre um programa de empréstimos populares. O contribuinte perdeu, assim como os mercados financeiro e de publicidade. O pior estrago, no entanto, seria uma decisão do STF que, ignorando fatos cuja existência nem os réus negam, arquivasse a denúncia do procurador-geral da República, como se tudo fora uma miragem. Ao evitar isso, a decisão do STF é auspiciosa. Mas ela não assegura uma autonomia eterna da legalidade. Quando se combate a impunidade em uma frente, ela ressurge com força em outra. No exato momento em que o ministro Joaquim Barbosa fazia história ao ler seu relatório no STF, o presidente do Senado, Renan Calheiros, e seus asseclas estudavam meios de estuprar as regras de funcionamento do Senado. Tudo para evitar sua cassação. Enquanto a democracia se fortalecia em um prédio, era ameaçada em outro.
Mas não é só no Brasil, país com um histórico de autoritarismo e de corrupção, que as instituições devem ser diariamente reafirmadas. Isso vale para todas as nações democráticas, em quaisquer etapas do desenvolvimento institucional. Berço da democracia constitucional, os Estados Unidos vivem um momento diferente. Começam agora a sair de uma ressaca institucional. Na semana passada, o secretário americano da Justiça, Alberto Gonzales, renunciou depois de ser acusado de demitir oito procuradores federais por motivos políticos. Após o 11 de Setembro, coube a Gonzales defender, por escrito, o uso de técnicas de interrogatório "duras" e a violação do sigilo telefônico, sem ordem judicial, de supostos terroristas dentro do território americano. Em seu célebre memorando em favor de suas técnicas heterodoxas de interrogatório, Gonzales escreveu, entre outras pérolas: "A tortura contra um suspeito em interrogatório só se configura quando a dor que causa é decorrente de danos permanentes à integridade física do acusado". Tal comando foi seguido à risca pelos interrogadores de Guantánamo e de prisões administradas pelos militares americanos no Iraque e no Afeganistão.
As instituições americanas, com sua vitalidade e capacidade de regeneração, começam a lidar com suas feridas. As nossas, não tão sólidas, só agora miram na testa de seu principal inimigo: a impunidade.