O Supremo hoje está livre da tutela do Executivo.
Falta agora abandonar sua própria tradição formalista
FACA NO PESCOÇO Para tornar o STF dócil, o regime militar ampliou para dezesseis e depois diminuiu para onze o número de juízes e aposentou compulsoriamente os ministros destacados nesta foto da esquerda para a direita, Victor Nunes Leal, Evandro Lins e Hermes Lima |
O Supremo Tribunal Federal nasceu pouco depois da República, em 1891, e desde a primeira hora teve de enfrentar os safanões da opinião pública e do Executivo. Os casos mais impactantes de sua fase inicial foram de habeas corpus impetrados por presos políticos. As sessões do plenário eram concorridas. As galerias do tribunal, na Rua do Lavradio, no Rio de Janeiro, ficavam repletas de gente que vaiava e aplaudia, mesmo ameaçada de expulsão. Na manhã seguinte, a imprensa esmiuçava cada voto e às vezes atacava ferozmente os ministros. A pressão do governo se manifestava de maneira diferente. Em 2 de setembro de 1893, por exemplo, o presidente Floriano Peixoto fez ameaças muito claras de dissolver o tribunal, caso fosse solto um senador encarcerado, adversário seu. A ameaça teve efeito. Decidido a impedir qualquer arroubo de independência da corte, o presidente adotou ainda outra estratégia: deixou de preencher diversas vagas resultantes da aposentadoria de juízes, e assim, sem quórum, o tribunal passou meses sem operar. Formava-se um padrão para as décadas seguintes. A opinião pública é o que é: barulhenta, às vezes agressiva, e sempre plural. Num país onde o autoritarismo com freqüência solapou as instituições democráticas, foi sempre o poder político que de fato pôs a faca na garganta do Supremo Tribunal Federal.
Em períodos de linha dura, o governo afastou ministros e alterou o tamanho do STF, de modo a torná-lo dócil. Isso aconteceu pela primeira vez em 1931, quando Getúlio Vargas, por decreto, reduziu de quinze para onze o número de juízes e aposentou compulsoriamente cinco deles. Vargas não interveio mais na corte desse modo, mas manteve a tática de intimidação: em 1940, o ministro da Justiça Francisco Campos sugeriu ao magistrado Octavio Kelly que se aposentasse, caso contrário poderia ser removido. A foto que ilustra esta página remete a outra fase histórica, a da ditadura militar. Mais uma vez o governo brincou com o tamanho da corte. Por meio de atos institucionais, inchou o grupo de juízes para dezesseis e depois voltou a onze. Em 1969, os ministros Victor Nunes Leal, Hermes Lima e Evandro Lins e Silva foram compulsoriamente aposentados. O primeiro havia sido nomeado pelo presidente Juscelino Kubitschek. Os dois últimos, por João Goulart, deposto pelo golpe militar.
O Brasil não vive hoje um período de exceção política. O Supremo não tem arma apontada contra ele. Um julgamento como o concluído na semana passada, que transformou em réus os quarenta envolvidos no esquema criminoso do mensalão, é uma daquelas ocasiões em que o escrutínio sobre os atos dos ministros e as pressões políticas exercidas sobre eles se elevam à potência máxima – mas isso é legítimo e, de fato, o Supremo, à semelhança de sua matriz americana, é uma instituição arquitetada para absorver esse tipo de impacto.
O julgamento da denúncia do mensalão é um marco na luta contra os corruptos, mas também na história do STF, ao ressaltar sua independência. Poucos presidentes puderam moldar tão profundamente a composição do tribunal quanto Lula, que indicou sete novos ministros. A quase-unanimidade com que os juízes acolheram a denúncia contra figuras-chave do governo Lula ressalta o fato de que, num regime de normalidade democrática, a nomeação de um ministro do Supremo não equivale à compra de sua submissão. Nos Estados Unidos, onde a história da Suprema Corte é estudada com minúcia, ao menos um quarto dos juízes levados à corte deixou consternados os presidentes responsáveis por sua nomeação, julgando, sistematicamente, de maneira oposta ao que se esperava.
Com tantas circunstâncias a seu favor, resta agora saber se o Supremo se livrará do peso de sua própria tradição de formalismo. A técnica jurídica é essencial em qualquer julgamento. O formalismo é um escudo para que um tribunal se exima de enfrentar uma causa polêmica em todas as suas dimensões – inclusive a política. Catorze anos atrás, uma denúncia por crime de corrupção contra o ex-presidente Fernando Collor de Mello foi aceita pelo STF. Diante de uma peça de acusação notoriamente mal-ajambrada, os juízes se abstiveram de pedir qualquer nova prova ou diligência – o que poderiam ter feito. Na hora de darem a sentença, limitaram-se a apontar as deficiências formais do processo e inocentaram o réu. Se no julgamento do mensalão os ministros se mostrarem mais ativos e menos burocráticos, terão inaugurado uma nova era na corte, independentemente do placar final de condenações e absolvições.