Entrevista:O Estado inteligente

sexta-feira, setembro 21, 2007

Demétrio Magnoli -A nossa corrupção e a deles


A então deputada Angela Guadagnin (PT-SP) entregou-se abertamente, de corpo e alma, à defesa dos “mensaleiros” nas comissões e no plenário da Câmara. No fim, quando um colega de partido se beneficiou da onda indiscriminada de absolvições, ela protagonizou a “dança da impunidade”, que lhe valeu fama instantânea e lhe custou a reeleição. O senador Aloizio Mercadante (PT-SP), operando sob instruções do Planalto, engajou-se furtivamente na missão de reverter intenções de voto favoráveis à cassação de Renan Calheiros. No fim, da sessão clandestina em que o Senado absolveu o homem das vacas milagrosas emergiu um Mercadante pálido que, balbuciando, declarou seu voto de abstenção e, desafiando as evidências, negou seu engajamento na operação de resgate do aliado do presidente.

Mercadante não se distingue de Guadagnin por seus atos, mas unicamente por se envergonhar deles - ou, numa interpretação cínica, por um cálculo eleitoral superior. Tanto quanto a deputada dançarina, o senador imprimiu à sua biografia política o credo indelével segundo o qual é tolerável a conversão do mandato popular num passaporte para o tráfico de interesses e a fabricação de patrimônios privados.

O PT não absolveu sozinho o pecuarista milagreiro - e nem todos os senadores do partido se curvaram ao credo de Mercadante. Mas o partido de Lula soldou a maioria parlamentar que, organizada como conclave de fora-da-lei, hasteou nas sombras a bandeira do escárnio. Mais uma vez, tal como no episódio das absolvições em massa dos “mensaleiros”, o núcleo principal da bancada petista consagrou o princípio da impunidade. A conclusão se impõe: das entranhas do partido que acusava e condenava numa única sentença, brandindo a espada de fogo da “ética na política”, nasceu um partido que tudo tolera, justifica e legitima - e que hoje, em nome da coerência, teria de recusar o processo de impeachment de Fernando Collor.

Coerência é o que busca o ministro Tarso Genro quando declara, como o fez dias atrás, que seu partido cometeu o erro histórico de, até a inauguração da Presidência de Lula, se apresentar como o guardião inflexível e solitário da “ética na política”. Na tardia retratação há algo mais que a marca inconfundível do oportunismo. De fato, a política democrática não é o terreno da verdade absoluta, mas das verdades possíveis, e não comporta uma narrativa do confronto da virtude contra o vício, cuja lógica exclui o horizonte da alternância de poder. O jogo democrático se faz, na maior parte do tempo, pelo exercício da razão instrumental, que inclui a negociação, a transigência, a conciliação, a acomodação de legítimos interesses eleitorais.

A retratação de Genro veicula uma reivindicação razoável. O PT quer ser avaliado à luz dos critérios comuns da política democrática - não pelos parâmetros inatingíveis da ética absoluta que cobrava dos outros, com fúria santa, nos tempos das célebres “bravatas de oposição”. Mas, de qualquer modo, há um limite para o exercício da razão instrumental, que é o respeito à regra legal e à integridade das instituições democráticas. Esse limite foi, uma vez mais, ultrapassado.

Coerência é também o que busca, por um outro caminho, a filósofa Marilena Chaui. No auge da crise do “mensalão”, quando os petistas procuravam reconhecer a sua própria imagem no espelho da história, Chaui teceu o discurso da negação, que lhes proporcionou um ponto de fuga teórico. Ela explicou que o balcão tentacular de negócios não existia, a não ser na forma de uma “construção fantasmagórica da mídia”. O álibi tem dinâmica própria: na sessão clandestina do Senado, o senador Almeida Lima (PMDB-SE) conclamou seus colegas a rejeitarem a acusação e afirmarem a soberania da Casa diante da mídia “abjeta, desqualificada, torpe e impudica”.

Chaui faz escola e inspira discípulos improváveis, mas está atenta para a fadiga inevitável do material discursivo. Depois que o STF aceitou a denúncia contra a quadrilha do “mensalão”, a filósofa cortesã reformou seu diagnóstico, mas apenas para apertar até o fim o parafuso, fabricando uma peça acabada de delinqüência intelectual em dois atos.

O primeiro ato é uma filosofia da corrupção: “Nenhum governante governa sem fazer alianças e negociações com outros partidos. Essa negociação tende à corrupção. Essa compra e venda ocorreu sistematicamente nos governos José Sarney, Fernando Collor, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso.” O segundo é uma corrupção da filosofia: “Mas o PT e seu presidente operário, como ousam fazer o mesmo que os partidos da classe dominante? Que ousadia absurda! Os meios de comunicação transformaram a situação em um caso único, nunca visto antes, e construíram a imagem do governo mais corrupto da história do Brasil.” Descontadas as inverdades óbvias, a filósofa está dizendo que corrupção é destino e que nos resta escolher entre a corrupção viciosa dos outros e a corrupção virtuosa dos seus.

O círculo se fecha e uma coerência se refaz. A virtude é uma imanência do PT e de Lula: reflete as essências do partido e de “seu presidente operário”, que não podem ser contaminadas pelas ações de um ou de outro. Os virtuosos estavam certos quando, com ou sem evidências, denunciavam e condenavam o vício - pois isso abreviava a chegada da virtude ao poder. Os virtuosos estão certos quando, contra todas as evidências, protegem a corrupção no seu meio e no meio dos aliados - pois disso depende a continuidade da união entre a virtude e o poder.

Na operação de cabala de votos, Mercadante não disse aos colegas que o homem das vacas quentes e das notas geladas é inocente, mas que sua cassação correspondia a um interesse da oposição e a uma tentativa de desestabilizar o governo. A sua razão instrumental não tem limites. É que, na nova ordem da filosofia, poder é virtude.

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