Entrevista:O Estado inteligente

domingo, setembro 09, 2007

DANIEL PISA

Os indomesticáveis

daniel.piza@grupoestado.com.br


A certa altura de Homem Comum, de Philip Roth (Companhia das Letras), o narrador diz de Howie, o protagonista: ''''Iludir a morte parece ter se tornado seu principal negócio.'''' Bem, esse não é o negócio de todos nós? - você poderia perguntar. Mas a palavra ''''negócio'''' é usada antes de mais nada em seu sentido concreto, o de atividade comercial, e àquela altura já sabemos tanto sobre a existência e os valores de Howie que a frase adquire mais ironia ainda. Sempre me perguntam quais os critérios para saber o que é uma grande obra de arte, um livro excelente. Difícil; mais produtivo seria dizer o que uma grande obra de arte não tem. Outro jeito é mostrar o que um escritor excelente, como Roth, faz. E uma coisa que ele faz é amarrar idéias em suas histórias com eficiência que poucos atingem, de um modo tão orgânico que não se pode separá-las.

Essa novela, cujo título original é Everyman, precisa de apenas 131 páginas para causar uma sensação em você que é muito mais que uma impressão; é como se o livro - seu clima, algumas cenas, algumas frases, o mundo particular em que ele nos deixa interessados - ficasse com o leitor por muito tempo, uma voz latente que a qualquer momento pode emergir na memória consciente. Se em O Animal Agonizante, para citar outro livro curto recente, o escritor americano criou um personagem cujos bastidores mentais visitamos por meio de seus casos sexuais, em Homem Comum são as doenças que pontuam a história, como momentos sintéticos de sua índole e angústia. ''''A dor faz você ter medo de si próprio'''', descreve, em outra dessas passagens esclarecedoras e nada consoladoras.

Para Howie, um publicitário que vive a trair as mulheres e a ser traído pelas doenças, só existe o corpo, no caso o seu, e tudo o mais é religião e fantasia. Somos informados sobre isso, mas Roth no parágrafo seguinte já retoma a trama, a sucessão de fatos, com um gancho nada irrelevante: ''''Mas, se ele acreditava ou não, isso não teve a menor importância no dia em que seu pai foi enterrado ao lado de sua mãe, no cemitério maltratado que ficava à margem da rodovia expressa de Nova Jersey.'''' A ficção em Roth é o que ela deve ser: não se trata de apenas contar uma história, como ocorre na literatura ''''acronicada'''' do Brasil - em que relatar uma experiência pessoal levemente disfarçada é o objetivo maior do autor -, mas recheá-la de inteligência, de percepção aguda e original sobre o comportamento humano, ao mesmo tempo sem intelectualizá-la demais em exercícios lingüísticos ou perorações artificiais.

Os temas de Roth, autor de tantas obras-primas como O Complexo de Portnoy, Patrimônio, Operação Shylock e O Teatro de Sabbath, estão todos lá, como a presença física da morte na vida, a relação difícil entre filho e pai, a crítica ao sionismo, a sexualidade como sintoma e cura - todos plasmados na matéria de uma vivência em que aceitamos acreditar por um período de tempo. As camadas se interpenetram, como numa folhagem que se embola e forma um organismo só, aberto às diversas interpretações. Há uma intensidade composta de mordacidade, lirismo e ceticismo como em nenhum escritor contemporâneo - nem em Ian McEwan, que no recente Na Praia entrou em território rothiano.

Roth é escritor de verdade, artista que não tem medo dos temas mais fortes e ao mesmo tempo não se limita à exposição sentimental deles - como faz Toni Morrison, para citar a escritora de quem a mesma editora acaba de publicar Amada, romance eleito como o melhor dos EUA nos últimos 25 anos. Morrison tem talento, mas se basta em criar situação dramática que mexe fácil com a compaixão - uma ex-escrava e sua filha numa casa assombrada por fantasmas dos socialmente injustiçados - e desenvolvê-la num crescendo previsível, tocado por lugares-comuns como ''''Eu devia sempre ouvir o meu corpo e amar o meu corpo''''. Howie nada tem de heróico ou redutivo. E é isso que o faz tão sutilmente real, tão poderosamente frágil.

O protagonista de Roth provavelmente curtiria o poema As Latrinas do Colégio Marista do Recife, de João Cabral de Melo Neto, incluído na antologia O Artista Invisível que, ao lado de Cão sem Plumas, acaba de chegar às livrarias em edições da Alfaguara. ''''Nos Colégios Maristas (Recife),/ se a ciência parou na Escolástica,/ a malvada estrutura da carne/ era ensinada em todas as aulas,/ com os vários creosotos morais/ com que lavar gestos, olhos, língua;/ à alma davam a água sanitária. que aliás nunca usavam nas latrinas'''', dizem as duas primeiras estrofes. Roth aplaudiria a expressão ''''creosotos morais''''. A última estrofe segue: ''''Lavar, na teologia marista,/ é coisa da alma, o corpo é do diabo;/ a castidade dispensa a higiene/ do corpo, e de onde ir defecá-lo.''''

O volume, que não tem poemas inéditos, tem a intenção de mapear as referências autobiográficas de João Cabral, a partir de sua própria noção de que na seleção de coisas de que fala haveria uma maneira de falar de si mesmo. A iniciativa é boa porque contraria a noção de sua poesia como algo tão ''''seco'''' e ''''construtivista'''' que seria desprovido de emoção e expressividade; afinal, como ele mesmo dizia, via o poema como Le Corbusier via a arquitetura, ''''uma máquina de comover''''. Ao mesmo tempo, tenho visto agora uma vontade excessiva de domesticar Cabral, de cair na ênfase contrária e, com isso, retirar o que de radical houve em seu gesto. Ele era contra a poesia cômoda, sentimental, confessional. Para tanto, inventou uma dicção única e, entre outros elementos, nela fez caber uma variedade de registros tal que o permite utilizar desde palavras como ''''declanchado'''' e ''''núbil'''' até ''''defecá-lo'''' ou ''''mija''''; ou então rimar ''''maré'''' com ''''chevrolets''''. Não liricizem João Cabral.

MEA-CULPA

Foi para dom João V que o governador Luis Vahia Monteiro, o Onça, escreveu carta dizendo que ''''nesta terra todo mundo rouba''''. E o livro de entrevista de Francis Bacon para David Sylvester já está na segunda edição.

UNA FURTIVA LACRIMA

Escrevi no blog que Luciano Pavarotti, morto na quinta aos 71 anos, foi uma espécie de Frank Sinatra do canto lírico - não necessariamente o melhor de todos, mas aquele que cativou mais pessoas, marcou um estilo e simbolizou uma era. Gigli, Di Stefano, Bjõrling e alguns outros podem ter sido maiores; Pavarotti, porém, seguramente foi um grande, em especial nas performances dos anos 60 e 70. Tinha belo timbre e amplitude, controle impressionante da emissão, potência, sensibilidade com doses de humor e drama. Tomou algumas vaias, mas uma vez foi chamado 17 vezes de volta ao palco pelos aplausos.

Certo, era um ''''divo'''', com ataques de estrelismo; quando o vi no Parque Antártica em 1992, ficou irritado com quem pedia para cantar o que não estava programado. Mas foi também um ''''bon vivant'''', que levava seu próprio queijo ralado aos restaurantes e adorava futebol. Concordo que se perdeu quando se tornou fenômeno pop - embora jamais um canastrão como Mario Lanza, que começou imitando. De qualquer modo, a voz já tinha deixado o apogeu, e o que fez nesse apogeu não pode ser apagado por preconceito. Servia Donizetti, Puccini e Verdi ao ponto e com molho suculento.

POR QUE NÃO ME UFANO

O que existe em comum entre Renan, CPMF e mensalão? Não, não é apenas o fato de que PMDB e PT estão articulando a votação da prorrogação do imposto - essa invenção tosca dos tucanos, que taxa o consumo e nem mesmo chega ao destino prometido da saúde - com a absolvição do senador em plenário. Mas tem tudo a ver. Muita gente se pergunta qual era o objetivo do mensalão, já que não havia necessidade de comprar votos daqueles parlamentares aliados e já que essas operações não serviram diretamente para pagar dívidas de campanha. É simples, pois está na própria lógica do poder brasileiro: o mensalão servia para capilarizar o controle sobre as verbas públicas, para ampliar a rede de troca de favores e cargos. Veja as ligações perigosas de Renan com empreiteiros, rádios, fazendeiros, etc. Um político brasileiro é como um açude por onde passam correntes de várias direções, as quais pingam ali periodicamente, enchendo sempre. E drenando mais e mais a fonte dos contribuintes.

Aforismos sem juízo

Ter estilo não é ser correto; é tornar qualidade o que nos outros seria defeito.

O mensalão servia para capilarizar o controle sobre verbas públicas, para ampliar a rede de favores

Roth não tem medo dos temas mais fortes e ao mesmo tempo não se limita à exposição sentimental deles

Arquivo do blog