Entrevista:O Estado inteligente

sábado, setembro 22, 2007

Cérebro: as áreas do prazer estético

O cérebro é o espírito

Nossa cultura fala do cérebro como se fosse um computador. Ele é a sede da razão, e a arte é reservada ao espírito. Mas
agora a neurociência estuda a música e outras atividades
que definem a essência humana


Carlos Graieb

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O cérebro nunca recebeu o devido crédito pelas criações artísticas. Aplicado à pintura ou à música, o adjetivo "cerebral" tem inclusive conotações negativas. Implica frieza ou cálculo – como se o mesmo órgão não fosse responsável por processar as emoções. O cérebro é engrenagem, computador, razão. Mas não arte. Há também quem julgue que tratar as esculturas de Michelangelo ou as sinfonias de Beethoven como produtos de um emaranhado de células nervosas tira delas a transcendência. Devido à antiquíssima divisão da experiência humana entre o físico e o imaterial, foi e continua sendo mais comum associar a arte a abstrações como as musas e o espírito do que ao trabalho de nossa massa encefálica. Em boa parte, contudo, essas idéias se deviam à falta de instrumentos adequados para estudar as artes do ponto de vista da neurologia. Isso mudou. Técnicas como a ressonância magnética funcional, que permitem captar imagens do cérebro em funcionamento, associadas a pesquisas no campo da neuroquímica e, de modo menos divulgado, a refinados modelos de computador de nossas redes neuronais, puseram em marcha uma revolução. A nova ciência do cérebro fez explodir o número de estudos sobre essas atividades tão intimamente ligadas à nossa essência humana: a produção e a fruição das artes. "Está surgindo uma nova disciplina", afirma o inglês Semir Zeki, uma das maiores autoridades mundiais na neurologia da visão. "Podemos chamá-la de neuroestética."

A neuroestética é uma via de mão dupla. Ajuda a entender melhor o cérebro e as artes. Cientistas que usam a música ou a linguagem como ferramentas para explorar nossa vida neural têm colaborado para derrubar velhos dogmas e refazer a cartografia do cérebro. O cérebro humano tem 100 bilhões de células nervosas e mais de cinqüenta substâncias neurotransmissoras. Estima-se que o potencial de conexões entre os neurônios chegue a 500 trilhões. Qualquer comportamento complexo depende de diversos grupos de células ligados por circuitos. A metáfora mais freqüente nos novos livros de neurologia é a das cascatas neurais – grandes seqüências de ativação de áreas do cérebro, às vezes bastante afastadas entre si. Uma das teorias destroçadas pelos achados recentes é o "localizacionismo". Ele remonta ao cirurgião francês Paul Broca, do século XIX, e postula que as principais habilidades humanas se devem única e exclusivamente a uma região do cérebro. Sim, é verdade que o órgão tem partes especializadas. Broca identificou uma delas, relacionada à fala. Como observa o biólogo americano Philip Lieberman, contudo, hoje é certo que a linguagem humana "pode ser rastreada até as respostas motoras dos répteis". Dito de outra maneira, ela envolve tanto partes primitivas do cérebro – aquelas que compartilhamos com cobras e lagartos – quanto outras que apareceram muito mais tarde na escala da evolução, como o lobo frontal esquerdo, que aloja a área de Broca. Especialização e coordenação – essa última em níveis às vezes insuspeitados – são dois princípios que governam o cérebro.

Mais recente ainda é a descoberta da incrível plasticidade do cérebro. Não faz muito tempo, pensava-se que pela idade de 3 anos o cérebro tinha sua estrutura rigidamente estabelecida. Hoje, está comprovado que a organização que o tecido cerebral assume no começo da vida não é definitiva. Provas assombrosas de que o cérebro é capaz de encontrar rotas alternativas para atingir a mesma finalidade estão nas hemisferectomias – operações que extirpam um dos hemisférios do cérebro, atingido por um sério dano. Um dos casos mais famosos é o do menino inglês Alex. Ele tinha uma anomalia no lado esquerdo, onde se concentram as estruturas responsáveis pela fala, e aos 8 anos de idade era incapaz de se comunicar. Dez meses depois que o hemisfério malformado foi retirado, Alex começou a se expressar com sentenças complexas, num exemplo dramático de como a massa encefálica consegue se rearranjar. Mas o fato é que pequenas metamorfoses neurológicas ocorrem todos os dias de nossa vida: a plasticidade é também o mecanismo pelo qual o cérebro responde ao mundo externo. Assim, áreas mais requisitadas por algum tipo de aprendizado, como o estudo musical, podem transformar-se em verdadeiros latifúndios neuronais. As conseqüências de constatar a maleabilidade do cérebro são profundas. Com isso, a velha disputa sobre quem molda o comportamento humano, a natureza ou a cultura, pode estar fadada a resolver-se num empate. Embora condicione de muitas maneiras a nossa experiência do mundo, o cérebro também possui uma capacidade espantosa de reconfigurar-se de acordo com a informação que recebe de fora.

Enquanto ajudam a compor uma nova "teoria geral do cérebro", cientistas interessados em arte fazem achados num terreno anteriormente percorrido apenas por filósofos e críticos culturais. Por exemplo: o que é a beleza? Numa experiência realizada no University College de Londres, Semir Zeki e sua equipe pediram a um grupo de pessoas que classificassem 300 pinturas como belas, feias ou neutras, numa escala de 1 a 10. Depois, as mesmas pinturas lhes foram reapresentadas, enquanto seus cérebros eram monitorados numa máquina de ressonância magnética. Uma gama diversa de estruturas cerebrais reagiu durante a experiência. Concluiu-se, no entanto, que o córtex orbito frontal medial e o córtex motor eram as áreas de fato ligadas ao julgamento do belo. O córtex orbito frontal medial, relacionado ao prazer e às recompensas, apresentou atividade mais intensa diante de quadros belos. A atividade era maior para um quadro que recebera nota 9 do que para um quadro nota 7. O oposto aconteceu com o córtex motor: maior atividade diante da feiúra. Como essa estrutura controla os movimentos, pode-se supor que a visão de algo feio deixa o corpo pronto a reagir, se necessário: se alguém diz ter vontade de "fugir" diante, digamos, de uma obra do artista brasileiro Tunga, talvez não esteja usando apenas uma figura de linguagem. "Tempos atrás, se você dissesse estar maravilhado com uma obra de arte, eu não teria uma maneira objetiva de verificar isso", diz Zeki. "Agora, as máquinas de neuroimagem nos permitem avaliar estados subjetivos. Melhor, permitem quantificá-los, pois a atividade numa região do cérebro tende a ser proporcional à intensidade declarada da experiência. Filósofos especulam sobre a beleza. Eu diria que ela é um aumento de fluxo sanguíneo na base do lobo frontal."

Semir Zeki escreveu um livro em parceria com o pintor francês Balthus e recita de memória trechos de poetas como T.S. Eliot. Ele diz que aprendeu com os artistas – "neurologistas intuitivos", que exploram e desvendam regras da percepção. Ele gosta de citar uma frase de Picasso: "Seria muito interessante preservar fotograficamente as metamorfoses de uma pintura. Talvez assim se pudesse descobrir o caminho percorrido pelo cérebro para materializar um sonho". Segundo Zeki, é isso que a neurociência começa a fazer. Desvendando um cérebro que calcula, mas também cria. E é tão sutil quanto as musas ou o espírito.


Arte para quê?

Quem pensa nas artes como um produto do cérebro logo chega a outras questões. Por que o órgão mais complexo do corpo nos capacita a criar pinturas e poemas? Qual a função dessas atividades? Será que despender energia inventando batidas de tambor e desenhos para a caverna ajudou nossos ancestrais a sobreviver? Essas perguntas remetem ao naturalista inglês Charles Darwin e sua teoria da evolução. Darwin refletiu sobre uma arte em especial – a música – e concluiu que ela teve papel evolutivo. Como a cauda nos pavões, ela nos ajudava a atrair o sexo oposto. Era uma ferramenta a mais do processo que Darwin chamou de "seleção sexual". Essa é uma de suas teses mais controvertidas. Para os cientistas que discordam, a arte é apenas um subproduto do aparato sensorial. O fato de alguns estímulos nos darem prazer fez com que inventássemos formas de ter acesso a eles repetidamente. Para o psicólogo canadense Steven Pinker, arte é um "doce mental" – dispensável mas saborosa. Ainda assim, Darwin pode estar certo? O fato de astros do rock, mesmo com as rugas de Mick Jagger, terem muito mais parceiras do que um homem comum seria uma confirmação da tese do papel da música na seleção sexual. Seria mesmo? Em parte sim, mas Jagger as atrai pela música, pela fama, pela riqueza ou pelo poder hipnótico sobre as massas? O debate continua. Só se sabe com certeza que, entre todos os grupos de hominídeos que disputavam recursos escassos na Idade do Gelo, o mais bem-sucedido foi o que encontrou tempo para decorar com pinturas as paredes das cavernas.

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Alguns personagens históricos se tornaram conhecidos por terem ouvidos de pedra. Os presidentes americanos Ulysses Grant e Theodore Roosevelt e o guerrilheiro argentino Che Guevara fazem parte desse grupo, assim como o romancista russo Vladimir Nabokov, que registrou: "A música me afeta como uma sucessão arbitrária de sons mais ou menos irritantes". Por muito tempo, eles foram considerados exemplos da surdez para tons, uma insensibilidade relativa para a música que se estima estar presente em 5% da população. Nos últimos anos, alguns cientistas passaram a se perguntar se eles não teriam sido portadores de algo mais raro. Em seu novo livro, Alucinações Musicais (Companhia das Letras; tradução de Laura Teixeira Motta; 342 páginas; 49 reais), o inglês Oliver Sacks, o mais famoso dos neurologistas, especula a respeito de Nabokov para em seguida relatar o caso de uma paciente. Essa mulher, identificada como "L.", jamais percebeu a música como tal. Desde a infância ela se viu em situações embaraçosas por não reconhecer o hino americano ou um singelo Parabéns a Você. Sua condição é causada por uma anomalia congênita no córtex auditivo, a amusia total. Eis como L. descreve um concerto: "Imagine que você está na cozinha e alguém joga todos os pratos e panelas no chão. É isso que eu ouço".

A disfunção de L. marcou-a como uma espécie de "alienígena". Para a maioria das pessoas, é difícil até conceber uma situação como a dela. A música carrega memórias e emoções e está profundamente entranhada em nossa experiência íntima. Mais que isso. Nenhuma cultura conhecida foi desprovida de música, e alguns dos artefatos mais antigos encontrados em sítios arqueológicos são flautas e tambores. Ao nascer, os bebês já distinguem entre escalas musicais, preferem a harmonia à dissonância e são capazes de reconhecer canções. Seu cérebro está pronto a decifrar musicalmente o mundo. Os caminhos neurológicos da percepção musical estão sendo esmiuçados como nunca. Como diz Robert Zatorre, professor do Instituto Neurológico de Montreal, a música se tornou alimento da neurociência.

Diversos estudos recentes demonstram como o cérebro é esculpido pela música. Por exemplo, o corpo caloso, a grande comissura que liga os dois hemisférios cerebrais, tende a ser maior nos músicos profissionais. Descobertas desse tipo levaram alguns a sugerir que expor crianças pequenas à música clássica lhes daria uma vantagem intelectual, mas essa idéia não é corroborada pela neurociência. As mudanças causadas pela música são muito específicas, e talvez se dêem à custa de outras funções cerebrais. Ouvir Mozart na infância certamente ajuda a ouvir Mozart na idade adulta – mas não traz necessariamente outros ganhos cognitivos. O que esses estudos ressaltam é a plasticidade do cérebro, a maneira como ele é moldado, muito concretamente, pela experiência individual. Não é só estudar música que resulta em diferenças relevantes. O tipo de aprendizado importa. Uma experiência com violinistas e trompetistas mostrou que a ativação do córtex auditivo é maior quando eles ouvem seus respectivos instrumentos. Outra pesquisa aponta que crianças chinesas têm mais chance de adquirir ouvido absoluto, que identifica automaticamente a altura de qualquer nota. Não pela raça, mas porque crescem ouvindo chinês, língua com grandes variações tonais.

Outro enigma desvendado é a razão fisiológica dos prazeres causados pela música. No recém-lançado This Is Your Brain on Music (O Seu Cérebro sob Efeito Musical), o neurocientista americano Daniel Levitin descreve as experiências que coordenou na Universidade McGill, do Canadá. As conclusões são técnicas, mas é possível visualizar a orquestra cerebral em ação. "Primeiro o córtex auditivo entra em ação para analisar os componentes do som", escreve Levitin. "Depois vêm regiões frontais, relacionadas ao processamento da estrutura e das expectativas musicais. Finalmente, chegamos a um sistema de áreas envolvidas na excitação e no prazer, na transmissão de opióides e na produção de dopamina, culminando na ativação do núcleo acumbens. Os aspectos agradáveis e estimulantes da audição musical parecem ser resultado do aumento de dopamina no núcleo acumbens e da contribuição do cerebelo na regulação das emoções. A música é uma forma de melhorar o ânimo das pessoas, e agora acreditamos saber por quê."

O trabalho de Oliver Sacks em Alucinações Musicais é muito diverso desse. Ele narra casos peculiares, da mesma forma que em livros anteriores como Um Antropólogo em Marte. São 29 capítulos com relatos sobre perdas e excessos de musicalidade, sobre a relação da audição com os outros sentidos, sobre canções que se incrustam em nossa consciência, repetindo-se incessantemente, ou sobre ataques epiléticos causados por sons específicos (como a voz de Frank Sinatra). Entre os personagens encontra-se Clive Wearing, um pianista que, depois de uma infecção no cérebro, sofreu uma perda tão devastadora da função de memória que todo acontecimento novo é esquecido imediatamente. Apesar disso, ele não só toca piano como um mestre, mas ainda improvisa e – mais surpreendente – aprende novas partituras. Outro exemplo é o de Sheryl C., que subitamente se viu mergulhada numa situação angustiante. Qualquer pessoa é capaz de relembrar, em silêncio, uma música conhecida. Mas, para ela, era como se uma orquestra estivesse dentro de sua cabeça, tocando trechos de A Noviça Rebelde. Reagindo a uma surdez progressiva, seu cérebro agia espontaneamente e criava alucinações musicais.

Alguns dos capítulos de Sacks falam sobre musicoterapia, vista com desconfiança por médicos e psicólogos. Sacks tem respeito pela disciplina, cujas bases científicas estão sendo reforçadas pela neurologia. O Núcleo de Envelhecimento Cerebral (Nudec) da Universidade Federal de São Paulo mantém pesquisas nesse campo, coordenadas por Cléo Monteiro França Correia. Uma de suas pacientes é a pedagoga Zeni de Almeida Flore. Em 2001, aos 72 anos, ela mostrou os primeiros sintomas da doença de Parkinson. O parkinsonismo é um distúrbio motor, mas é comum que danifique outras áreas do cérebro, acarretando afasia e demência. Foi o que aconteceu com Zeni. À medida que a doença avançava, ela se viu incapaz de manter um diálogo e, depois, até mesmo de nomear objetos. Havia uma única situação em que ela conseguia pronunciar palavras com fluência: ao cantar. Há um ano, a capacidade musical de Zeni foi identificada. Encaminhada à musicoterapia, ela teve ganhos lingüísticos: recobrou certo poder de articular sentenças e responder a perguntas. Doenças diferentes requerem abordagem musical diferente, observa Sacks. Mas, lidando com o ritmo ou despertando emoções, a música pode orientar um paciente quando mais nada é capaz de fazê-lo.

"NEUROLOGIA PESSOAL"

Eileen Barroso
Oliver Sacks: contra a "civilização do iPod"

Numa das salas de seu consultório em Manhattan, o neurologista inglês Oliver Sacks, de 74 anos, mantém um quadro com retratos de amigos, a foto de um polvo e a cópia xerográfica de um texto de dicionário sobre o "abaçanamento", suplício medieval que consistia em cegar a vítima encostando uma placa de metal incandescente nos seus olhos. Explicar o interesse por esse tipo de tortura fez com que Sacks revelasse a VEJA uma doença. Em 2005, ele descobriu um tumor no olho direito. Submeteu-se a tratamento por radiação e sessões de laser, versão benigna do abaçanamento. A cura é incerta, mas, em vez de fazer do assunto um tabu, Sacks registra sua vivência da doença num diário. Num desenho do globo ocular, ele mostra a mancha que atrapalha sua visão. Para explicar como os objetos se tornam invisíveis para ele por causa dela, usa um conceito da astrofísica, os "horizontes do evento". Eles ocorreriam, segundo a teoria da relatividade de Albert Einstein, na periferia dos "buracos negros", dos quais nenhuma matéria ou radiação consegue escapar. Como saber que os "buracos negros" existem se não emitem luz ou outra radiação? Justamente pelos "horizontes do evento", turbulências detectáveis que ocorrem na fronteira do espaço-tempo e que sinalizam a existência de um "buraco negro" nas proximidades. "Como nos 'horizontes do evento', há experiências quase impossíveis de comunicar", diz Sacks. "Fazemos o possível com metáforas."

O uso da experiência pessoal, assim como a luta para encontrar palavras que descrevam estados de consciência incomuns, é um dos pilares dos extraordinários livros de Sacks. Em sua nova obra, Alucinações Musicais, ele também relata episódios pessoais, como as ocasiões em que sofreu de amusia, em 1974. Na primeira vez, ele ouvia uma balada de Chopin no rádio quando as notas musicais se converteram em "marteladas sem tom com uma desagradável reverberação metálica". Dias depois, a experiência se repetiu, acompanhada de alterações visuais que revelaram que o distúrbio advinha da enxaqueca. A maneira como Sacks aparece em seus livros decorre de como ele lida com seus pacientes e entende sua profissão. Contra os limites da "neurologia clássica", de olhar puramente objetivo, ele busca uma "neurologia pessoal", calcada no entendimento global do organismo e da história de cada pessoa.

Alucinações Musicais é uma prova de que as interações entre música e neurociência mal começaram. Mas o livro também atesta uma paixão pela arte. Sacks é dono de um piano de cauda Bechstein fabricado em 1894 e tem opiniões fortes sobre música. "Amo Brahms", afirma. "No outro extremo, odeio Wagner com sua música erótica e inflada. Não gosto de arte que tenta me seduzir." Sacks enxerga um paradoxo na maneira como as pessoas hoje lidam com a música. Ele é um crítico da "civilização do iPod". "Não é só porque a surdez juvenil está aumentando de modo alarmante. Com esses aparelhos, as pessoas se enclausuram nelas próprias." Diz ele: "No passado remoto, a música uniu e sincronizou os homens. É o que está se perdendo hoje".

Enigmas da linguagem

Fotos Great Ape Trust of Iowa
Sue Savage-Rumbaugh e o bonobo Kanzi: ele se comunica com desenvoltura usando os "lexigramas", tabuleiros que contêm 384 símbolos e palavras do inglês

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Do americano Noam Chomsky se diz que é um idiota em política, por anunciar o fim do capitalismo a cada espirro das bolsas, e um gênio na ciência por seus trabalhos de lingüística. Chomsky sustenta que a linguagem depende apenas de regras universais incrustadas no cérebro, que não guardam relação nenhuma com as atividades pelas quais nos comunicamos – falar, ouvir, gesticular. Assim como a política de Chomsky está errada, suspeita-se agora que sua ciência também caminha para a desmoralização. Depois de quatro décadas de hegemonia, sua abordagem abstrata está cedendo lugar a outra, naturalista. A evolução da linguagem, tema que Chomsky havia banido, é hoje uma área de estudos efervescente. Como observa a lingüista americana Christine Kenneally, autora do recém-lançado The First Word (A Primeira Palavra), trata-se de um problema extraordinariamente complexo. "A linguagem surgiu muito antes da escrita", disse ela a VEJA. "Como investigar sua origem se não há fósseis de palavras?"

O uso da linguagem é uma das características especiais dos humanos. Há dois caminhos para explicá-la na biologia. Sabe-se hoje que o genoma humano é 98% igual ao dos chimpanzés. Uma alternativa é buscar a explicação para a existência da linguagem nos 2% restantes. A outra é considerar que, para serem criados, os poemas homéricos e as peças de Shakespeare dependeram tanto daquilo que é exclusivo quanto daquilo que compartilhamos com outros animais. Esse é o caminho adotado por cientistas como Sue Savage-Rumbaugh e Philip Lieberman. Savage-Rumbaugh ganhou notoriedade ensinando macacos a produzir e compreender alguns aspectos da linguagem. Em 2003, anunciou que Kanzi, um bonobo que já conseguia se comunicar com desenvoltura usando um tabuleiro de símbolos, havia pronunciado uma palavra em inglês.

O trabalho de Lieberman se dá no campo da neurologia e da fisiologia – ou seja, das estruturas corporais ligadas ao fenômeno da linguagem. Uma de suas experiências o levou ao Monte Everest. Ele queria observar como os danos temporários causados pela falta de oxigênio a uma das estruturas mais antigas do cérebro, o gânglio de base, responsável por seqüenciar movimentos, afetavam a fala. A bateria de testes que aplicou em alpinistas mostrou que não apenas sua fala piorava à medida que eles subiam a montanha e o ar se tornava mais rarefeito: seu domínio da sintaxe também diminuía. Foi a prova de que o sistema motor do cérebro é um dos pontos de partida para nossa capacidade de nos expressar. Em outras palavras, a linguagem humana tem raízes numa estrutura que compartilhamos com as criaturas mais primitivas. Trabalhos recentes do autor ajudam a desfazer de vez a idéia de que a capacidade de concatenar palavras depende de um compartimento milagroso em nossa mente. Até mesmo o conceito de que as estruturas da linguagem estão concentradas no hemisfério esquerdo do cérebro já não se sustenta. Elas estão em toda parte.

Mais incipiente do que a compreensão geral da linguagem no cérebro é a tentativa de entender nosso hábito de criar poemas e histórias. Já existem alguns esboços. O pesquisador David Miall, da Universidade de Alberta, no Canadá, desenvolveu um programa de computador que analisa variações métricas e fonéticas em obras literárias. Depois, comparou esses padrões com os da fala de uma mãe ao seu bebê. Descobriu que a mãe enternecida repetia, de maneira um tanto exagerada, os mesmos ritmos encontrados na grande arte. Como a fala da mãe também transmite emoções, circuitos que relacionam a literatura à experiência emocional poderiam começar a se formar aí. Quanto à habilidade narrativa, ela vem sendo estudada com base nos casos de pessoas que sofreram lesões no cérebro. Como talvez seja óbvio, acidentes que afetam a memória costumam comprometer a capacidade de narrar. Pessoas com amnésia grave não conseguem transmitir sua vivência aos outros. Curiosamente, porém, um subgrupo dos desmemoriados age de maneira oposta: de forma quase compulsiva, inventam versões contraditórias de um acontecimento cuja circunstância real esqueceram. Ao contrário do que ocorre com certos políticos, o objetivo não é enganar: trata-se de um esforço instintivo de satisfazer à curiosidade de quem lhes perguntou algo. Como mostram esses indivíduos desafortunados, a atividade de narrativa está de algum modo entranhada na estrutura física do cérebro humano.



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